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“MOSQUITO” – Não basta rever o passado, é preciso refletir sobre ele [44 MICSP]

Imagine-se um mundo em que não tivesse ocorrido a Primeira Guerra Mundial, ou que Portugal não tivesse participado dela, ou, ainda, que Portugal não tivesse mandado soldados seus a Moçambique em momento algum. Não é essa a realidade de MOSQUITO, que, pelo contrário, é bastante fiel aos cruéis fatos do período. Mas o filme estimula a imaginação para essa direção para que a história talvez nunca mais se repita.

Zacarias é um português de dezessete anos recém-alistado para representar seu país na Primeira Guerra. O jovem é enviado para Moçambique, tendo como missão defender as terras coloniais da invasão alemã. Logo no começo, todavia, ele é deixado para trás. Sozinho e em território desconhecido, Zacarias não se abate e vai em busca de seu esquadrão. Contudo, o que ele encontra são aventuras que jamais pensaria que poderia ter – se é que as têm.

(© Leopardo Filmes / Divulgação)

O longa de João Nuno Pinto é um filme de realidade em alguma medida fantasiada, um filme de guerra contra a guerra e um filme sobre colonização contrário a colonização. Costurando essas antíteses, Zacarias abandona estereótipos bastante sólidos – os soldados portugueses não são bravos, os moçambicanos não são selvagens, os alemães não são hostis – e que eram responsáveis por moldar sua personalidade e, em especial, seu “discurso inflamado” (mesmo discurso que não é do agrado do tenente). O Zeitgeist é retratado com fidelidade: os doentes e mortos são inúteis, os inimigos não têm senso de humanidade, os moçambicanos não têm humanidade alguma. O olhar pode ser áspero, mas é fidedigno (a título de exemplo, Moçambique tornou-se independente de Portugal apenas em 1975).

A narrativa escrita por Fernanda Polacow e Gonçalo Waddington começa como um filme de guerra, se desenvolve como road movie e se encerra na origem, quase como um círculo. As conclusões de Zacarias podem ser previsíveis, mas não o que o leva a tais conclusões, sobretudo porque não se sabe o quão reais são as suas aventuras. O protagonista passa por andanças aparentemente intermináveis e acontecimentos quase fabulescos. Doente, ele tem alucinações que, no mínimo, o fazem duvidar sobre a ordem cronológica dos eventos, o que torna legítimo questionar sua própria existência. Isto é, se a sua memória está bagunçada e se sua mente está afetada, nada impede que o que ele viva sejam alucinações – o que seria bastante plausível inclusive por seu espírito apaixonado por aventura.

A bem da verdade, Zacarias não têm paixão por aventura. São suas palavras: “eu trago a Guerra nos meus pensamentos e a pátria no coração”. Em uma carta, ele clara a sua motivação – ou, mais precisamente, uma motivação que é, no mínimo, lateral – para se alistar: um lar opressivo. A disparidade imensa entre o pensamento dele e de seus superiores, porém, sugere que a idade ameniza a empolgação flamejante por participar de algo vil como uma guerra. Mesmo quando o tenente explica o quão cômoda é a situação em uma base, Zacarias insiste. João Nunes Monteiro encanta no papel do valoroso protagonista – valoroso não pelo êxtase bélico-patriota, mas porque disposto a dissolver pensamentos equivocados. Sua jornada é dolorosa, carnal como um sexo enérgico, amarga como uma fruta ainda não madura, quente como um passeio no inferno. Compreendendo o sofrimento do papel, Monteiro é visceral e autêntico.

No primeiro sono de Zacarias, os sons diegéticos soam assustadores – e a edição de som do filme é muito boa, com ruídos bem realistas (objetos balançando na mochila, pássaros, folhas etc.). O fado cantado por integrantes do exército português (uma vez em uma reunião em local fechado, outra, na fogueira) não é um alento, é um sopro frio que desce na espinha daquele que aceita mergulhar naquela atmosfera. A música cantada pelas moçambicanas é abraçada por tons de música eletrônica – seria mais uma alucinação de Zacarias?

A postura do protagonista é justificadamente a de prontidão perene, pois tudo e todos podem representar um perigo. Parte da responsabilidade para a muitíssimo precavida postura é dos superiores: “punhos fechados e olhos bem abertos” (em relação aos moçambicanos, comparados a animais irracionais). O filme é relativamente extenso (cerca de duas horas), porém sem excessos e, principalmente, proporcional ao aprendizado de Zacarias. O jovem é constantemente filmado na contraluz, o que simbolicamente representa seu heroísmo, ao passo que, do ponto de vista literal, é a representação do forte sol africano (com o qual certamente não está acostumado). Na prevalência de tons pastéis e encantadoras paisagens naturais, o soldado faz longas caminhadas e tem tempo para muitas reflexões. Ele já não mais enxerga os colegas de infantaria, os alemães e os moçambicanos da mesma forma. A guerra faz parte do passado, não é possível mudá-la, e o mesmo ocorre com a indigna colonização portuguesa contra Moçambique. Não basta olhar para o passado, é preciso refletir sobre ele. Com maestria, é isso que “Mosquito” propõe ao espectador.

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.