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“NOITE PASSADA EM SOHO” – Melhor atentar para o invólucro

Poucos filmes conseguem mesclar gêneros distintos com tanta naturalidade quanto NOITE PASSADA EM SOHO. Há nele muito suspense, bastante drama, algum terror e um pouco de musical. A mescla é orgânica e convincente. Contudo, o problema do filme é outro. Dentro de um invólucro quase irrepreensível jaz um conteúdo vulnerável: ele existe e tem seu valor, mas é frágil e não combina com o que o reveste.

Eloise, uma jovem estudante de moda, consegue fazer misteriosas viagens à Londres dos anos 1960. Lá, ela acompanha episódios na vida de Sandie, uma aspirante a cantora que passa a admirar. A década de 1960, que encantava Eloise, se revela muito menos glamourosa – tanto para ela quanto para Sandie.

Edgar Wright tornou-se famoso muito mais como diretor do que como roteirista, sendo este mais um filme que o consagra enquanto tal. Ao lado de Krysty Wilson-Cairns, seu roteiro é deveras decepcionante. Nas primeiras interações entre Ellie (Eloise) e Sandie, há uma via aberta para a interpretação psicanalítica dos sonhos, sobretudo porque a primeira enxerga a si mesmo como a segunda. Se, para Freud, sonhos são a realização de um desejo do indivíduo, Ellie deseja ser alguém como Sandie, extrovertida, sem pudores e capaz de se expor para fazer o que quer – afinal, até aquele momento (leia-se, o momento das primeiras aparições de Sandie), Ellie era vítima da repressão de Jocasta.

(© UNIVERSAL PICTURES / Divulgação)

Não é bem esse, porém, o caminho que os roteiristas adotam. Preferem aumentar a identificação entre Ellie e Sandie. Assim, quando esta dança com Jack, aquela também o faz (o que Wright aproveita para usar a câmera para dar maior dinâmica à cena); quando a segunda recebe um “chupão”, a primeira, também. Em uma espiral na qual Ellie desesperadamente se torna Sandie, a direção para a qual essa ideia leva é quase paradoxal. Há que se elogiar, ainda, os trabalhos de Thomasin McKenzie, como Ellie, e de Anya Taylor-Joy, como Sandie, porém os arcos das duas personagens não são igualmente funcionais. Enquanto a primeira surge com um sonho, tendo superado (mãe falecida) e superando (morando só vinda do interior) dificuldades aos poucos, a segunda também surge almejando algo, mas do nada. Dito de outro modo, sabe-se muito bem desde o começo quem é Ellie, mas o mesmo não se pode dizer de Sandie, o que dificulta a identificação com ela. Quando ela é colocada na posição de vítima, isso é facilitado, mas não supre a falha anterior.

Quando Sandie é vitimizada, é aumentado o drama e não tarda para o filme enveredar para o suspense e, depois, para o terror. O sobrenatural é tardio e nunca plenamente claro: estaria acontecendo apenas na mente da protagonista? A ambivalência se faz presente também do ponto de vista imagético, como, por exemplo, no quarto de Ellie, onde pisca uma luz azul e vermelha – salvo quando o terror é prevalente, sumindo o azul. A estética de “Noite passada em Soho” é impecável, sobretudo no figurino. Em sua primeira aparição, Ellie surge em um vestido que parece colagens de jornal; no caso de Sandie, um vestido de cor salmão, brincos e colar brilhantes e cabelo levantado. O vestuário dos anos 1960 vai de um belíssimo casaco branco de vinil a um vestido com laço grande à frente, dentre outros.

São inúmeras, por sinal, as referências diretas e indiretas aos anos 1960. No (primeiro) quarto de Ellie há um cartaz do filme “Bonequinha de luxo” (“Breakfast at Tiffany’s”, no original), de 1961; em um cinema, está em exibição “007 contra a chantagem atômica” (“Thunderball”), de 1965, protagonizado por Sean Connery. Por outro lado, a visão da época não é romantizada (ao menos por completo). Como não poderia deixar de ser (muito menos em um filme de Edgar Wright), a trilha musical é quase uma personagem autônoma. Estão lá a obra mais famosa de Peter & Gordon, “A world without love”, a linda voz de Dusty Springfield em “Wishin’ and hopin’”, o rock de The Kinks em “Starstruck” e diversos outros também da época. Há uma metalinguagem em via de mão dupla: Anya Taylor-Joy participa de cenas musicais e de fato canta na trilha; Cilla Black, além de ser uma personagem (interpretada por Beth Singh), foi uma cantora do período; como fez em “Em ritmo de fuga”, Wright enalteceu o nome de uma personagem relevante em uma canção (“Eloise”, de Barry Ryan) em uma cena; e o próprio nome do filme, “Last Night in Soho”, de Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Titch, está na trilha.

Noite passada em Soho” tem emoção e é certamente capaz de entreter, mas há um enorme desnível entre a sua técnica audiovisual – principalmente o figurino, a trilha musical e o design de produção – e o seu roteiro. Em sua concepção, ele não é ruim, mas um filme que poderia ser grande cai facilmente no esquecimento porque suas personagens, ainda que não desinteressantes, não são as mais cativantes. Um bom exemplo está nas secundárias: enquanto Jocasta (Synnøve Karlsen) é a bullie que não admite não ser o centro das atenções, John (Michael Ajao) é o príncipe ávido pela atenção que não recebe. Ambos unidimensionais e clichês orbitando ao redor da protagonista. Nos minutos finais, o script anda na corda bamba e flerta com um aspecto eticamente questionável (sem, porém, abraçá-lo). Por essas e outras, melhor atentar para o invólucro do que para o conteúdo que está dentro dele.