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“NOMADLAND” – A frieza e a impessoalidade da Economia

O pano de fundo de NOMADLAND é o que os economistas chamam de Grande Recessão, que consiste em uma contração da economia (no caso, global) ocorrida no início dos anos 2010 (que, em parte, decorreu da crise do mercado imobiliário estadunidense, em 2008). Em 2011, os EUA viveram o que ficou conhecido como crise do limite da dívida pública, iniciando um debate congressual sobre a adequação de um aumento (grosso modo, aceitar que o Estado gaste mais do que arrecade em medida maior que a anteriormente aceita). O que os dados econômicos camuflam – mas o filme não permite esquecer – é que existem pessoas que sofrem consequências, por exemplo, da falência de uma empresa.

Fern é uma dessas pessoas, perdendo seu emprego em uma empresa de gesso. Em razão do colapso econômico na área rural de Nevada, viúva e aos sessenta anos, Fern decide viajar dentro de sua van, abdicando do tradicional e adotando o nomadismo como novo modo de vida.

(© Walt Disney Pictures / Divulgação)

O fechamento da fábrica em que Fern trabalhava é apenas o ponto de partida do texto original de Jessica Bruder – livro no qual a diretora e roteirista Chloé Zhao se baseou para o longa. A falência da empresa é mais que um evento circunscrito a uma região e é certamente mais que um dado inserido no contexto financeiro do local e da época. Trata-se, na obra, de um dos sintomas de uma sociedade e de uma cultura que padecem de um engessamento (não à toa, essa é a especialidade da empresa onde trabalhava a protagonista) do ponto de vista eudemonista. Nessa sociedade e nessa cultura, o caminho da felicidade está traçado com um concreto que, de alguma forma, dificulta qualquer outra rota.

O diretor de fotografia Joshua James Richards aproveita a ideia do filme para, imageticamente, traduzir sua mensagem de jornada. É por isso que são vários os planos mostrando Fern em uma estrada, colocando-a como dona do caminho que pretende trilhar – independentemente do julgamento alheio. Mesmo que algumas pessoas possam ser lançados ao nomadismo por força de circunstâncias adversas, isso não desfaz o nexo entre essa opção e o fato de ser ela uma opção. Ao olhar tradicional, Fern é uma “sem teto” (homeless, no original), quando na verdade o que ela não tem é uma casa nos moldes convencionais (houseless). Ela passa frio no gélido inverno de Nevada, mas é também vivendo assim que consegue dedicar seu tempo para contemplar a natureza (vendo um bisão ou nadando nua em um lago). Ainda que não seja uma casa, a van de um nômade funciona como um lar, ou ao menos como uma estrutura física pela qual é possível nutrir algum afeto (dando-lhe um nome).

Criação original de Ludovico Einaudi, a bela trilha musical de “Nomadland” exerce enorme função de preenchimento porque assim seu ritmo o exige. Na montagem, sequências longas são uma constante, sempre acompanhadas do sensível piano de Einaudi, que, por sua vez, cresce em momentos de acontecimentos narrativos de maior relevância. Esse tipo de momento, contudo, é diminuto: o roteiro tem o minimalismo como imperativo, o que explica, por exemplo, a cena em que Fern desloca-se pelo acampamento de nômades sem nenhum propósito específico que não o da pura apreciação. O estilo da direção acaba sendo um pouco documental não apenas porque parte do elenco é constituída de atores não profissionais, mas por se assemelhar a uma espécie de registro daquela realidade (como quando Fern aprende o que deve ser feito com as fezes de um nômade).

A diferença entre os estilos de vida – convencional e nômade -, para além do óbvio, é enaltecida, novamente, pela fotografia, no uso de tons azulados e avermelhados. O azul está presente, por exemplo, quando Fern trabalha na Amazon e se aproxima ao cotidiano da maioria da população; o vermelho, quando ela está dentro da sua van e no acampamento de nômades, onde a paisagem desértica do oeste estadunidense transmite um calor que se harmoniza com o calor humano que a protagonista encontra. Quanto ao material humano, as pessoas são de faixas etárias bem diferentes e convencem, muitas delas, porque vivem uma versão de si mesmas (são nômades). Não é esse o caso de Frances McDormand, que, todavia, interpreta Fern de maneira coerente com a proposta minimalista (falas concisas, personalidade serena, tom de voz que pouco se modifica, olhar pacato etc.).

O calor humano dividido entre os nômades não tem semelhança alguma com o calor que eles podem encontrar nas estruturas macroeconômicas mencionadas, principalmente o Estado. Há uma escancarada omissão estatal em relação às pessoas que ficam desamparadas, do que resulta o nomadismo como uma comunidade fraterna. Não é outro o trato dado pelas empresas, para quem o empregado é mera força de trabalho – o que, no caso de Fern, acaba sendo um trampolim para a nova vida, para a qual ela se joga inadvertidamente (levando uma bronca de Swankie). No desfecho, percebe-se que aquelas pessoas fizeram uma opção, da qual podem, eventualmente, se arrepender por ter sido a errada, sem poder afirmar, porém, que foram vítimas do cenário. Essa justificativa talvez possa ser usada para explicar a sociedade com um olhar econômico, mas não com um olhar humanista.