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“O ACONTECIMENTO” – A proximidade da França de 1963

Em 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento do caso “Roe v. Wade”, decidiu que a Constituição do país protege a liberdade individual das mulheres grávidas, razão pela qual caberia às autoridades garantir-lhes o aborto, caso assim optassem, de maneira segura. Em 2022, ao julgar “Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization”, a decisão foi anulada. Em 1940, foi promulgado o Código Penal brasileiro, que estabeleceu como lícito o aborto nas hipóteses em que não houver outro meio de salvar a vida da gestante e em que a gravidez foi resultante de estupro. Em 2022, há diversas vozes do cenário político brasileiro querendo repetir o retrocesso ocorrido nos EUA, retirando das mulheres um direito (que, no caso nacional, é deveras restrito). A França de 1963, retratada em O ACONTECIMENTO, nunca pareceu tão próxima do continente americano.

Anne é estudante de Literatura e recebe a notícia de que está grávida. Mesmo em uma sociedade na qual o aborto é considerado crime, ela decide abortar para prosseguir seus estudos. Com a barriga crescendo e as provas chegando, Anne precisa ser rápida para agir enquanto pode.

(© Zeta Filmes / Divulgação)

Anamaria Vartolomei transmite uma seriedade em Anne que combina com o seu perfil focado nos estudos e sem nenhum interesse em ser “transformada em dona de casa” – expressão usada por ela ao explicar a um professor sua situação. Na mesma cena, inclusive, ela associa sua gravidez a uma doença, em parte porque ele pergunta se ela estava doente (e se é por isso que não estava mais dando conta dos afazeres da faculdade), mas também em razão da intensidade com que ela rechaça a hipótese de abandonar a Literatura para ter um bebê.

O roteiro do longa foi escrito por Marcia Romano junto à diretora Audrey Diwan, que se basearam no livro de Annie Ernaux. O passado distante vivido por Ernaux não parece tão distante quando se considera sua inserção em uma sociedade em que o sexo era um tabu hipocritamente censurado. Uma moça poderia mostrar movimentos sexuais em uma almofada para as suas amigas, o que significa que a própria relação sexual poderia ser assunto, mas apenas entre quatro paredes e para pessoas próximas. Por outro lado, falar em aborto, que é – como o filme mostra muito bem – uma questão de saúde pública (ultrapassando, portanto, o âmbito da moralidade ou da religiosidade), era perigoso demais. Faz sentido: quando o tema ingressa na seara criminal, ele se torna proibido (diferentemente do sexo em si, que pode, no máximo, ter consequências morais). Não à toa, Anne ouve de um médico que “a lei é impiedosa”.

É por força da impiedade da lei que as pessoas ao redor de Anne não querem associação alguma com seu intento. Há pessoas que optam por distanciamento, há pessoas que a enganam, mas encontrar alguém solidário, ainda que apenas no discurso (sem atos materiais de ajuda), é dificílimo. Mais fácil para Anne é encontrar alguém como Jean (Kacey Mottet Klein), que, além de julgá-la, tenta em certo momento se aproveitar da sua vulnerabilidade. Apesar da rigidez da protagonista, representada imageticamente com seu figurino quase sempre azul, ela está em situação de vulnerabilidade.

Para imprimir pessoalidade ao longa, a diretora reduz os sons extradiegéticos e aumenta o foco na protagonista. Para aumentar a aflição, as cenas-chave se limitam a sons intradiegéticos, como a da consulta médica, em que as luvas cirúrgicas colocadas pelo profissional são fonte de angústia. Em outras, a música instrumental usa notas bastante agudas para gerar desconforto no espectador. Na filmagem, Diwan opta por uma razão de aspecto quadrada e enquadramentos mais fechados para usar o espaço do campo quase integralmente com a protagonista. Por exemplo, na cena em que Anne conversa enquanto tem uma refeição com Jean, na maior parte do tempo o que é mostrado é o braço dele próximo a ela, pois quem é importante ali é ela. A mesma lógica se aplica à pouca profundidade de campo.

A direção é hábil ao expor a transição de Anne, expondo sua queda de rendimento na faculdade, bem como ao transmitir o desespero crescente através da contagem de tempo das semanas de gravidez. O trabalho da atriz principal, todavia, seria engrandecido se o filme explorasse o seu backstory, seja em relação ao curso (por que ela escolheu Literatura? Por que seu plano era dar aulas?), seja em relação a Maxime (Julien Frison). Certamente o Zeitgeist, que é bem retratado, tem maior importância do que a própria vida de Anne, contudo a obra teria mais substância se Anne fosse também uma personagem efetiva em seu filme – e não apenas a heroína de um caso real diante de inúmeros que ocorreram, ocorrem e continuarão ocorrendo em países que reduzem o aborto a questões morais e/ou religiosas.