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“O BURACO” – A violência está ao redor

Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).

Todo filme manipula o espectador de alguma forma. A começar pela condição passiva em que é necessário se deixar levar para acompanhar a trama, a experiência cinematográfica pode condicionar boa parte dos impulsos sentidos pela audiência: a curiosidade de saber como a história se encerra, a sensação de estar diante da realidade tal como ela é ou o conjunto de emoções experimentado por estímulos audiovisuais. A grande questão é discernir como a linguagem fílmica é trabalhada para gerar esses efeitos, questionando se a manipulação não chega a ser tão impositiva que deixa o público refém de apenas um tipo de reação possível. O BURACO abre reflexões sobre a manipulação pela arte, no que se referem a alguns comentários sociológicos e às possibilidades de narrar um filme.

(© Marana Productions / Divulgação)

Longa-metragem de estreia da diretora Dace Puce, o indicado da Letônia ao Oscar de 2022 é um drama que gira em torno de Markuss, um menino de dez anos. Em uma comunidade na Letônia, os moradores locais ficam assombrados com o relato da jovem Emilija, que acusa Markuss de tê-la deixado cair em um buraco na floresta e não a ter ajudado a sair. Enquanto alguns adultos decidem o que deve ser feito, a narrativa apresenta seu protagonista e os demais personagens ao seu redor. Entre eles, está a avó Solveiga, o tio Alberts, o casal Roberts e Smaida e um solitário homem apelidado de Marinheiro. Estas pessoas que fazem parte da vida do garoto gradativamente mostram que comportamentos violentos podem, na verdade, pertencer às vidas daqueles que deveriam educá-lo e cuidá-lo.

Dace Puce introduz o personagem principal de modo a torná-lo suspeito aos olhos do público. Um plano sequência segue Markuss pelas costas desde o momento em que está na floresta (mais tarde será possível saber que foi pouco depois da queda de Emilija) até sua chegada em casa. Todos os detalhes parecem indicar algum aspecto de sociopatia, de transtornos psicológicos ou de um fúria violenta indefinida: a câmera custa a enquadrar o rosto do jovem para aumentar o suspense sobre ele, a atuação de Damir Onackis sugere uma personalidade fria e ações muito calculadas, o menino fala sozinho repetidamente sobre algo ser justo porque fazia parte do acordo, os desenhos feitos por ele possuem traços escuros bem marcados como se tivessem saído de uma história do terror e a resposta dada à avó quando perguntado sobre o incidente é enigmática. Após esta apresentação, não seria improvável imaginar qual seria a próxima atitude agressiva do protagonista, considerando principalmente os familiares ao seu redor. A avó tenta ser ainda mais rígida com ele, obrigando-o a trabalhar com ela ou com o primo Roberts, e o próprio primo humilha o garoto sempre que pode.

À medida que a trama avança, as suspeitas iniciais são colocadas em xeque. Isso porque a expectativa de uma ação violenta por parte de Markuss não se concretiza e são os personagens coadjuvantes os responsáveis por algo assim. Solveiga não maltrata o neto, mas demonstra dificuldade de se relacionar emocionalmente com ele, já que ela constantemente passa alguma tarefa ou se indigna com suas reclamações sobre não querer fazer algo. Roberts tem uma péssima relação com o pai Alberts e é um marido abusivo para Smaida, mulher que aparece sempre amedrontada ou angustiada. Os demais moradores da região tratam o garoto como se fosse um criminoso em potencial que já estivesse colocando em prática sua brutalidade interior por culpa de transtornos psicológicos, como se percebem nas sequências em que um grupo de mães tentam analisar os desenhos. As próprias crianças que aparecem em cena refletem o que já acontece de maneira mais intensa nos pais, em especial o irmão de Emilija e seu amigo, ambos convictos de que precisam se vingar de Markuss.

O único personagem que foge à regra é o Marinheiro. Inicialmente, ele até parece ser mais um adulto que hostiliza o protagonista, já que, no primeiro encontro, acredita que o menino pretendia roubar sua propriedade. Nos dias seguintes, Markuss precisa levar remédios ao homem a pedido da avó, o que faz os novos encontros serem mais amistosos e capazes de criar uma amizade entre eles. O gesto cuidadoso de guardar a bicicleta esquecida do garoto e a descoberta de um belo vitral no armazém da propriedade são responsáveis por aproximá-los de uma forma que nenhum deles esperava. A partir daí, o talento artístico do protagonista ganha mais uma oportunidade de se desenvolver porque ele passa a ajudar na finalização do vitral ao comprovar para o sujeito que sabe desenhar e que a arte faz parte de sua vida. Enquanto o trabalho avança, Markuss descobre mais sobre o passado do Marinheiro e que ele não se enquadra nos padrões heteronormativos da sociedade. Apesar de ter uma reação inicial de surpresa com o fato, jamais manifesta qualquer sinal de preconceito, o que se diferencia de Solveiga, quem se afastou do homem após um longo convívio durante a adolescência.

Por mais que a sequência de abertura seja expressiva na maneira de apresentar Markuss através do plano sequência, a narrativa não mantém uma construção visual tão significativa que pudesse explorar seus princípios dramáticos. A noção que cada vez mais prevalece na dramaturgia é a de que a suspeita prévia de que o menino pudesse ter um espírito violento precoce não se confirma na prática, porém ela depende muito do texto em si e menos de escolhas estilísticas saídas da linguagem cinematográfica. Ocasionalmente, alguns aspectos parecem que podem emergir como um padrão visual recorrente da direta, como as cenas em que o protagonista observa os acontecimentos ao redor através do reflexo de uma janela ou de um buraco no cobertor. Estes momentos pontuais sugerem algum trabalho metafórico com o título da obra, na linguagem original em letão “bedre“, que significa cama, e na tradução para o inglês “pit“, que significa poço ou buraco. Entretanto, tais construções não se sustentam na mise-en-scène e a narrativa transita por diferentes núcleos e subtramas sem uma ligação tão forte à primeira vista.

Como é o roteiro, acima dos demais aspectos narrativos, que sedimenta o filme, o trabalho de Dace Puce em parceria com Jana Egle, Monta Gagane e Peteris Rozitis chama mais atenção para si. Por um lado, existem pontos que podem se sobressair com essa opção, como o desenvolvimento da relação entre Markuss e o Marinheiro, o uso de alguns flashbacks em tom de mistério sobre a queda de Emilija no buraco na floresta e as sugestões manipulativas a respeito das decisões futuras do menino. Por outro lado, algumas subtramas são deixadas em uma posição tão coadjuvante que o efeito dramático que possuem não é valorizado como poderia (especialmente, o tumultuado relacionamento entre Roberts e Smaida até uma revelação chocante) e certas informações são negadas ao espectador por um longo tempo apenas para insistir em um suspense que já se pode antecipar. Ainda assim, a manipulação feita pelo filme em torno do uso que Markuss fará de uma faca que ganhou de presente é o maior mérito do roteiro, afinal as expectativas iniciais não seriam nada otimistas considerando o protagonista que se apresentava na sequência de abertura.

Então, a arma se torna um símbolo para a jornada de Markuss e para o olhar que “O buraco” constrói para essa história. Sabendo que o público pode fazer julgamentos precoces sobre os personagens que irá acompanhar, o filme trabalha conscientemente as leituras precipitadas que se pode fazer. principalmente após um acontecimento grave, e manipula as previsões do que virá a seguir. De um menino que simplesmente teria transtornos psicológicos e seria naturalmente violento, a narrativa oferece novas nuances com um contexto que contém abandono familiar, isolamento emocional, tragédia parental, impulsividade típica da idade e sofrimento pela violência de terceiros (praticamente todos os personagens ao seu redor praticam algum ato violento, físico, verbal ou psicológico, contra ele). A mudança na perspectiva acerca do menino se consolida quando a faca é enfim utilizada e o vitral é finalizado. Tal qual o vitral colorido parece deslocado em um armazém precário e cinzento, Markuss parece um jovem artista deslocado em um mundo brutal sob muitos sentidos.