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“O DESAFIO DE MARGUERITE” – Autossabotagem via clichês

O cinema carrega diversos estereótipos na forma de caracterizar os seus gênios. Dotados de uma inteligência inigualável, costumam ter dificuldade em socializar e uma série de trejeitos típicos. Embora possa se aliar a personagens magnéticos, há muito reducionismo nessa dificuldade imagética de se representar a genialidade, e O DESAFIO DE MARGUERITE parece compartilhar dessa mesma deficiência.

Prestes a realizar a apresentação mais importante de sua vida e defender a própria tese, a jovem Marguerite compensa a desordem pessoal na resolução de problemas matemáticos. Cansada de ser comparada com o igualmente brilhante Lucas, mas que diferente de si esbanja bastante carisma, ela decide resolver um antigo dilema numérico, mantido em aberto durante décadas. Conforme essa obsessão passa a dominar todos os traços de sua personalidade, a garota percebe a necessidade de repensar a própria vida.

Dirigido pela francesa Anna Novion, o filme chama a atenção pela forma como constrói, ao menos em seus segmentos iniciais, uma protagonista de difícil assimilação. A prepotência da atriz Ella Rumpf, na pele de uma irritante Marguerite, suspende a relação com o espectador, forçado a questionar sua própria antecipação dos sucessos da personagem. Isso é colocado como um fator positivo, que complexifica a experiência ao emular, até certo ponto, os estados de uma mente compulsiva que afasta a sua hospedeira de si mesma.

( © Synapse / Divulgação)

Isso determina uma câmera distante, guiando planos abertos em momentos de bastante tensão, recursos que potencializam a inércia da protagonista e dimensionam, com bastante simplicidade, o declínio de sua psique. É como se a direção invertesse a lógica de pessoalização, prometendo um arco destrutivo pelo uso da alienação – uma alienação perante os demais, uma mente ofuscada pela convicção de ser maior do que todas – como ferramenta que desumaniza.

Todavia, esse recurso predomina unicamente nos primeiros minutos, mapeando uma dinâmica que seria inovadora – e que, por mais contraditória que possa parecer, alavancaria o elo entre personagem e plateia justamente pela estranheza gerada -, não fossem os clichês que logo dominam o roteiro. Não demora que se perceba uma ausência quase completa de uma tradução da escrita, frágil, para as imagens, que por sua vez revelam a escassez do projeto enquanto exemplar audiovisual.

Bombardeada constantemente com perfis tomados como norte, Marguerite órbita um universo íntimo bastante interessante, na forma como transpõe sua racionalidade excessiva na incapacidade de suprir danos danos emocionais. É como se a escrita ficasse totalmente encarregada de ditar mudanças de narrativa e na dinâmica entre personagens, sem que exista um acompanhamento das imagens em movimento. Não é que o roteiro seja indigno, trazendo consigo uma boa premissa. Mas a exteriorização de suas ideias, em tela, deixa de se interessar por sua própria persona central, incapaz de ir além da representação literal e verborrágica de uma personagem com muito potencial de aprofundamento subjetivo.

De certa forma, Anna Novion acaba esterilizando a produção tal como sua protagonista tenta manejar seus desafios de matemática, planificando personas que antes pareciam vastas e conjurando um novo desafio para si. Marca disso está na ligação que o filme estabelece entre a jovem e Lucas. Ao simbolizar sua extrema e oposta face, o rapaz, interpretado por Julien Frison, também acaba beirando a caricatura, envolto em uma série de piadas previsíveis e que em pouco vão além no desenvolvimento dicotômico dos dois.

Seria injusto omitir o grau, ainda que mínimo, de habilidade visual com que a diretora conduz as ações de seu elenco, propondo uma lógica de afastamentos e aproximações conforme suas conexões vem e vão. Mas ainda assim, o filme é incapaz de subverter a sua própria contradição, tentando demonstrar, inicialmente, um certo fascínio pelo desenvolvimento antipático de Marguerite, apenas para se render às expectativas socialmente impostas sobre ela.

Pincelando alguns traços de uma protagonista interessante, “O desafio de Marguerite” é curioso em suas primeiras passagens, ousado na criação de uma figura de difícil conexão. Conforme suas boas ideias se esgotam, entretanto, o filme logo revela as fragilidades de sua tese, traindo a própria personagem título. Tem-se assim um filme menos interessado nas complexidades da mente humana se não na própria homogeneização dos intelectos mais curiosos que andam entre nós.