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“O SENHOR DO CAOS” – Vazios mitológicos

Por mais que a mitologia forneça diversas ferramentas a exploração audiovisual, nem sempre os realizadores fazem um bom proveito. Não são poucas as narrativas que abusam de simbologias de maneira a esvaziar os seus significados, traduzidos em imagens superficiais que pouco tem a acrescentar. Esse é o caso de O SENHOR DO CAOS, terror ambientado em uma vila rural que se baseia em crenças locais.

Recém chegada em sua nova cidade, Rebecca, a nova madre de uma pequena comunidade, leva uma vida tranquila com a filha, Gracie, e seu marido. Tudo se transforma quando a filha desaparece, em meio às comemorações de uma festa típica. Conforme avança em suas investigações, ela passa a suspeitar de uma conspiração ainda maior por trás de tudo.

Dirigido por William Brent Bell, chama a atenção a construção espacial do vilarejo, convidativo em sua roupagem de época. Os detalhes que apontam para a importância desses códigos de superstição reivindicam a força dessas figuras, impressas em fantasias e máscaras que se espalham pelos campos. Esse acabamento sugere um cuidado com a linguagem narrativa do projeto, mas que infelizmente não acaba se verificando no todo.

(© Diamond Films / Divulgação)

Ainda assim, merece destaque a sequência de abertura, que justapõe um batismo conduzido por Rebecca (Tuppence Middleton) e um ritual duvidoso feito por sua filha, em que ela retira alguns pelos de seu coelho de estimação. A montagem paralela propõe um choque entre o sagrado e o profano,
sugerindo a deteriorização que está por vir.

É interessante como essa escolha da significado aos planos de apresentação, e antecipam a personalidade da protagonista que acompanharemos. Não demora muito, entretanto, para que a construção desse universo caia no desinteresse, e o filme se desvencilhe da própria coragem em adentrar o gênero.

Ainda que o personagem título e seus coadjuvantes insiram um conjunto de personas alegóricas – e que usam diretamente de imagens do horror, como a cabeça de bode e os chifres pontiagudos, por exemplo -, a execução das buscas se filia a recursos muito saturados, e que trazem um realismo exagerado para a maior parte da duração.

É como se as miragens, os pesadelos e o absurdo não pudesse brilhar por completo, sabotado por passagens mais arrastadas é que demonstram as dificuldades do casal de processar os acontecidos. Nesse sentido, todavia, é interessante o trabalho de fragmentação interna de Rebecca, dividida entre os impulsos de agir pelas próprias mãos e as virtudes com as quais foi criada durante a vida inteira. Mais do que a reverberação de atitudes em si, ela se depara com um conjunto de preceitos obscuros, forçada a entender os mesmos em troca do reencontro com a filha.

Acaba frustrando, entretanto, a forma como essas incursões não se traduzem no mesmo aproveitamento visual explorado no prológo, restrito aos diálogos que ela tem com o parceiro ou em flashes pouco inventivos que tentam aproximá-la do seu objetivo. Existe um abandono do esmero artístico e do design de produção em função de reviravoltas que em nada acrescentam ao todo, apenas revelando a falta de material na constituição do projeto.

A própria exploração da figura título, por exemplo – e que se escora na figura de um aldeão, interpretado por Jocelyn Abney, de potencial subaproveitado na maneira como ele se metamorfosea entre a fantasia carnavalesca e sua verdadeira face -, acaba prejudicada. Isso porque o desaparecimento de Gracie funciona mais como um incidente isolado que na sugestão de um complô mantido a gerações, e motivado por uma série de questões na história da pequena cidade. Há a ausência de um argumento escrito, por exemplo, que justifique o longa como uma obra folk, ambientado em meio a florestas assustadoras como mero preciosismo estético.

Não suficiente, cabe mencionar ainda o desfecho da produção, que se rende à escrita expositiva e acelera a conclusão de diversas personagens, inseridas como uma mera distração para a superficialidade da relação entre Rebecca e a sua filha. A decupagem priorizada ao final escolhe os planos conjuntos, que unificam ações e performances físicas – dignas de um filme de ação sucateado, ao menos na forma como as personagens agridem umas as outras para chegar aos seus interesses – e ignoram a atmosfera sobrenatural que se tentou mapear até o dado momento.

Dessa forma, “O senhor do caos” não valoriza a potência mitológica que encontra em suas mãos, descartando um bom acabamento artístico que acaba indo pouco além da perfurmaria. Ainda que apresente uma interessante sobreposição de ideais sacros e profanos, compositores de curiosas contradições, a fragilidade de suas personagens acaba afastando o espectador. Resta o desinteresse pelas próprias alegorias que apresenta, reduzidas à máscaras de Halloween que ficarão esquecidas no armário de uma criança qualquer.