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“O SOM AO REDOR” – Retrato do isolamento impossível

Um dos filmes mais marcantes da história do cinema nacional, O SOM AO REDOR é exemplo de bom uso das técnicas cinematográficas a partir de um argumento simples. O longa contou com mais de 70 mil espectadores em suas sete primeiras semanas de exibição. Depois disso, ultrapassou fronteiras e mostrou ao mundo um pequeno retrato do Brasil. 

A chegada de uma equipe de segurança privada na esquina de uma rua de classe média em Recife muda a vida dos moradores locais. Enquanto alguns comemoram a tranquilidade trazida pelos vigilantes, outros vivenciam momentos de tensão. Uma suposta onda de violência é utilizada como pretexto pelos personagens para oferecer o serviço. Dessa forma, eles prometem afastar qualquer perigo, mas com isso têm acesso a todos os passos dos moradores. Os conflitos de cada personagem se entrelaçam, criando uma teia em que um é coadjuvante da vida do outro.  

CinemaScópio / Divulgação)

O filme se inicia com fotos em preto e branco de um tempo passado. Nessa cena, destaca-se o som de marcha, com instrumentos de percussão. Após um corte seco, é apresentada a segunda cena. Já nos dias atuais, mostra algumas crianças andando de bicicleta e culmina no choque entre dois carros. Em poucos minutos e com três planos, está estabelecida a base histórica para o longa: o tempo passou e, agora, os perigos estão dentro e ao redor da segurança dos muros. 

Com essa aproximação abrupta de dois tempos históricos, o filme sugere a permanência de algumas relações e de modos de vida. Assim, o que parece ser um contraste torna-se a apresentação de semelhanças e de continuidades. Entre as similaridades, ficam evidenciadas as relações de trabalho e o afastamento das diferentes classes sociais. 

O diretor e roteirista Kleber Mendonça Filho nos mantém presos na rua Setúbal, assim como os moradores. O próprio diretor é morador local e utilizou sua casa como cenário para a família da personagem Bia (Maeve Jinkings). Como integrante do contexto que apresenta, Mendonça afirmou que a rua simboliza os antigos engenhos de açúcar, com representações daquele tempo disfarçadas pela urbanização. Por isso, ele nos apresenta uma crônica audiovisual com críticas ao caráter cíclico da história nacional. 

As interpretações mais marcantes são de Maeve Jinkings, como Bia, e Irandhir Santos, como Clodoaldo. Ela tinha o desafio de mostrar diferentes camadas, como o estresse em decorrência dos latidos, a masturbação com a máquina de lavar roupas, o cuidado com os filhos e a negociação de maconha com o entregador de água. Maeve entrega uma personagem que transita com sutileza entre esses diferentes propósitos. Assim, traz o realismo mundano, como definido pelo diretor. Irandhir também se destaca pelo equilíbrio. Ele mantém o tom de mistério em que se percebe um rancor contido. É o antagonista ideal para o tom arrogante da classe média representada na obra.  

A fotografia do filme é atenta aos detalhes. Pelas mãos de Pedro Otelo, as cenas trazem plano aberto e plano detalhe, com movimentos que destacam o aprisionamento dos personagens. Para isso, também são utilizados recursos como zoom in e zoom out, em que o filme mostra, por exemplo, como grandes prédios estão cercando uma pequena comunidade. Em relação às cores, ganham destaque os tons sóbrios, mostrando uma redução da vitalidade dos cenários e das pessoas. Enquanto as características visuais são sutis, a sonoridade é intensa e condutora da trama.

O som é utilizado para mostrar as relações entre os personagens. Assim, os ruídos são representações da dificuldade de diálogo entre os diferentes componentes deste pequeno Brasil. A sonoplastia, por sua vez, aparece como um comentário autoral sobre os eventos em tela. Logo, todos os sons presentes no filme são intencionais e mostram a influência de outros fatos ao redor do que é mostrado no primeiro plano. Nenhum personagem está isolado em seus dramas. Todos vivem seus próprios medos e desafios de forma simultânea. 

Os ruídos são invasores inconvenientes, que mostram a presença de outras pessoas próximas ao que vivemos. Mendonça utiliza o som para conectar as histórias vividas por seus personagens. Por isso, “O som ao redor” é uma produção sobre o que está inevitavelmente a nossa volta. Assim, ele aborda o aumento da sensação de medo que implica uma busca maior por isolamento. Ele mostra o esforço dos personagens para livrarem-se de um perigo ora imaginário, ora desproporcional. Com isso, aponta para as contradições daqueles que lutam contra a violência vinda de fora e ignoram as violências cometidas dentro de seus próprios lares.

O pânico está presente em “O Som ao Redor”. Ele chega em forma de medo constante, de desconfiança e dos pensamentos recorrentes de que algo ruim pode acontecer de repente. Por isso, o filme não precisa de grandes elementos para provocar o público. Ele se comunica com o íntimo de cada um de nós, com nossos medos e com nossas variações extremas entre excesso de atenção aos perigos e falta de consciência sobre os ruídos cotidianos. 

“O Som ao Redor” é simples, intenso e divertido. Ele denuncia com o cuidado de não reproduzir. Impacta com o propósito de educar. Mostra a tendência cíclica da história sem esperança de final feliz. O longa impressiona, adicionando ao cinema brasileiro mais um registro sincero de nossas próprias contradições.