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“PETERLOO” – A luta de um diretor

O diretor Mike Leigh possui em sua filmografia um grande interesse pela classe trabalhadora inglesa. Com intimismo e sensibilidade, opta geralmente por dramas familiares comuns dessa classe, como em “Agora ou nunca” (2002), disponível na Amazon Prime. Às vezes se arrisca em questões polêmicas como o acesso ao aborto, tema de “O segredo de Vera Drake” (2004). Quando cruzou esse olhar sobre a classe trabalhadora com a questão racial, surgiu sua obra prima, que lhe rendeu a Palma de Ouro de melhor diretor: “Segredos e mentiras” (1996). Em seu mais recente filme, PETERLOO (2018), da Amazon Prime Video, o diretor se lança em um voo mais panorâmico sobre tema, ao propor um drama épico com contornos trágicos. Nele, irá defender valores que acredita serem parte da “alma” desse grupo social: o espírito de luta, nesse caso, pela representação política.

A película tem a tarefa de narrar o episódio conhecido como “O massacre de Peterloo”, que ocorreu em 1819 em Manchester, quatro anos após a vitória inglesa sobre o exército napoleônico em Walterloo. Trata-se de um episódio bem lembrado, mas pouco reverenciado da história britânica, um surto de radicalismo nortista rapidamente ceifado pela coroa. Isso porque o principal mote da luta dos trabalhadores esfomeados era o acesso à representação política negada para Manchester: a boa e nem tão velha democracia.

(© Amazon Studios / Divulgação)

No centro da narrativa acompanhamos a família de Joseph, um rapaz que acaba de lutar em Waterloo. Seu pai tecelão e sua mãe vendedora de tortas penam pelo pão nessa nova sociedade pós-guerra que ignora os males que sofrem os mais vulneráveis. A revolta social vai se impregnando aos poucos quando o povo busca respostas. Mike Leigh cria uma estrutura quase institucional com múltiplas vozes que vão incorporando na trama os agentes da época: trabalhadores, militares, revolucionários, imprensa e mulheres. Essa teia tem como objetivo explicar ao máximo o contexto que levou à tragédia, e o diretor leva o tempo que acha necessário ao longo de suas 2 horas e 35 minutos. Toda essa burocracia é levada ao extremo em termos de cinematografia, assinada por Dick Pope, que abusa de ambientes pequenos e fechados, com uma iluminação barroca que garante dramaticidade às atuações quase minimalistas. A luz acinzentada dos céus ingleses é reservada para momentos de extrapolação, como no último ato, com uma sequência final grandiosa à luz do dia.  

Mas a narrativa acaba saindo ferida pela guerra travada por Leigh para defender a luta britânica pelo voto, por voz, aqui representada por Manchester, o que prejudicou substancialmente sua obra, que acaba se perdendo em alguns momentos na comunicação, inábil muitas vezes em criar sensações, plasticidade e emoção. A classe trabalhadora é representada aqui de uma forma romantizada, enquanto as elites política, econômica e militar são demonizadas sem piedade. A nobreza é especialmente patética e fútil. Esse maniqueísmo, expresso de forma dinâmica na montagem das sequências do massacre, não pode ser nada além do fruto de um trabalho idealista que se deixou cegar.

O cineasta parece optar por um caminho de pedras de certezas, não ousando muito na problematização histórica no roteiro escrito por ele. Há uma premissa de injustiça social que toda a mise en scène irá tentar justificar. A pobre família de Joseph se utiliza de diálogos expositivos quase oniscientes para levar as informações políticas necessárias para o público. A narrativa é fragmentada quando aparenta ter como objetivo passar segurança e coesão. Ao tentar englobar várias vozes, por vezes o filme fica mudo. Personagens entram e saem da tela sem acrescentar nenhum carga dramática ao filme, como partes de um pintura que o artista julga importantes, mas que por vezes são sonegadas pelo olhar por não fazerem muito sentido ou por serem inúteis. Se o sentimento é um tecido poderoso nos filmes anteriores do diretor, aqui, a construção do objeto narrado usa uma cola artificial. As sequências funcionam mais em separado, como monoblocos, retratos, do que como construção de uma história que terá como clímax um momento importante do país.

Talvez esse fulgor seja justificado. Há vestígios dele em outros trabalhos de Leigh, mais bem elaborados por possuir um escopo menor. Ele pode ter relação com a sociedade britânica atual. Duzentos anos depois de Peterloo, o projeto neoliberal que se iniciou no final dos anos 1970, levou ao empobrecimento e à perda de direitos graduais da atual classe trabalhadora. Ken Loach tem reforçado esse tema cada vez mais em suas obras, mais notadamente em “Eu, Daniel Blake” (2016) que trata dos problemas da assistência social e “Você não estava aqui” (2019), sobre o processo de uberização. Foi bem sucedido em um escopo menor, com uma lente de aumento. Mas Leigh não tem a mesma sorte. Ao tentar lidar um grande processo sociopolítico de uma forma um tanto idealizada, acaba não sensibilizando de forma grandiosa, como nos seus trabalhos anteriores.