Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“RESPECT: A HISTÓRIA DE ARETHA FRANKLIN” – Escolha certeira

Foi a própria Aretha Franklin quem escolheu a atriz para interpretá-la no filme que seria sua biografia. Não poderia ter acertado mais. O problema é que a Rainha do Soul não escolheu, para RESPECT: A HISTÓRIA DE ARETHA FRANKLIN, os nomes da direção, do roteiro e da montagem, por exemplo. Se o tivesse feito, mesmo randomicamente, seria pouco provável um resultado inferior.

Antes da fama e do sucesso que lhe rendeu inúmeras premiações e homenagens, Aretha Franklin foi uma cantora de coral de igreja desde a infância, defensora de direitos civis dos negros e ativista feminista. Tudo isso, contudo, em uma vida com sofrimentos causados pelos outros e por problemas de si mesma.

O grande defeito do longa é que não mostra tudo o que a lenda biografada representou. É verdade que a vida de Franklin teve conteúdo extenso demais para apenas um filme, ou seja, não seria possível mostrar tudo sobre ela. Em quase duas horas e meia, porém, quase nada é mostrado. No final da sessão, fica difícil saber mais do que já está na sinopse: cantora premiada, direitos civis, feminismo e igreja. Suas principais canções, como “I never loved a man (the way I love you)”, “Respect”, “Ain’t no way”, “(You make me feel like a) Natural woman”, “Chain of fools”, “Think”, “I say a little prayer” e “Amazing Grace”, se fazem presentes em potência espiritual e vocal. Mas isso não é sequer o mínimo do que se espera.

(© UNIVERSAL PICTURES / Divulgação)

Respect” é um filme superficial. A conhecida relação de Franklin com Martin Luther King Jr. é pouco exposta, o que ocorre também com outros nomes da sua época e que a influenciaram. A igreja está em sua vida desde a infância, sendo central na transição da infância para a idade adulta, em uma bela elipse – provavelmente a única bem feita pela diretora Liesl Tommy. É na igreja que “Ree” (apelido da cantora na família) começa a sua carreira musical, mas também é lá que ela reencontra o caminho para a defesa contra o que chama de seus “demônios”. As elipses são geralmente apressadas e exibidas de maneira clichê (discos na tela), ao passo que o lado gospel de Aretha está apenas no início e no fim do filme, como se a igreja não tivesse sido importante na sua vida em outros momentos. A abordagem é reducionista nesse e em todos os outros aspectos da sua vida.

Outro exemplo está nas relações familiares. O pai, interpretado pelo sempre competente Forest Whitaker, surge como um reverendo pouco coerente com o que prega (basta ver a cena da arma), pai rígido em demasia (a cena do atraso para gravação) e extremamente controlador (a todo momento). A mãe, vivida por Audra McDonald, é uma presença angelical que orienta Ree sobre a existência de escolhas na vida e lhe dá forças contra um de seus demônios. As irmãs e a avó são pouquíssimo abordadas: aquelas, com pouco afeto (salvo na cena em que as três conversam sobre a interação entre os pais) e algum ciúme (desde a infância, por sinal); esta, como uma grande mãe praticamente sem personalidade.

Os filhos de Aretha são irrelevantes no filme, mas o mesmo não se pode dizer de seus relacionamentos afetivos. O principal deles é com Ted – a escolha de Marlon Wayans para o papel é deplorável -, que se torna desafeto do pai da protagonista sem explicação razoável. Com o avanço do relacionamento entre Ree e Ted, surge o segundo tipo de violência que ela sofreu. Antes, porém, ela já havia sido vítima de outro tipo de agressão, exibida de maneira tímida, quase com receio de expor algo daquela magnitude. O roteiro de Tracey Scott Wilson e Callie Khouri é incapaz de progredir organicamente na vida da biografada mesmo seguindo uma estrutura narrativa clássica e linear.

VIsualmente, o filme tem nível aceitável, como no figurino de época e o design de produção (que é relevante para apontar a infância confortável da protagonista). Como não poderia deixar de ser, é no som o grande destaque positivo, sobretudo porque a escolhida pela própria biografada para o papel foi a gigante Jennifer Hudson. Com penteados fiéis aos usados por Aretha, Hudson incorpora o papel com dramaticidade muito além da desenvolvida nos demais aspectos do filme (a começar por roteiro e direção). Sua interpretação é tocante em momentos que, com outra atriz, seriam inofensivos – por exemplo, a cena do olho roxo e a que enfrenta Ted. Hudson faz um trabalho vocal para deixar seu timbre mais agudo (e mais parecido com o de Aretha), o que é acentuado nas primeiras cenas, na versão mais jovem da protagonista. No canto, sua voz mais grave é contida também para dar semelhança à de Franklin, sem prejuízo da emoção que imprime em cada canção (em “Amazing Grace”, seu suor é palpável).

Em determinado momento do longa, as imagens coloridas são intercaladas em preto e branco completamente sem critério, reforçando que a obra não faz jus ao ícone que foi Aretha Franklin. O erro da película, como mencionado, não é a incapacidade de expor tudo o que a Rainha do Soul representou, mas a capacidade de não expor (praticamente) nada. O canto de Hudson é uma homenagem bonita e um alento no filme, mas para isso não seria necessário um filme, bastaria (re)ver os shows de Aretha.