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“RUA DO MEDO: 1978 – PARTE 2” – Apropriação consciente de universo

Em momentos pontuais, RUA DO MEDO: 1978 – PARTE 2 ainda se parece mais com uma série televisiva do que com um filme. Ainda estão lá a necessidade de fazer um levantamento geral da parte um (previously) e a disposição de aguçar a curiosidade pelo que está por vir na parte três. Porém, em comparação com o primeiro capítulo da trilogia, esta nova produção original Netflix lida de forma mais rica com o universo slasher sobrenatural que orienta a história da cidade de Shadyside. Por um lado, as referências arquetípicas e atmosféricas de um dos clássicos do subgênero estão presentes; por outro, a narrativa ressignifica dinâmicas, subtextos e construções estéticas com um olhar contemporâneo consciente do legado do terror.

(© Netflix / Divulgação)

A trilogia teve início em 1994, quando Deena e Josh sobreviveram aos eventos brutais desencadeados por três assassinos mascarados sob influência de uma bruxa ancestral. Então, os dois jovens procuram C. Berman, a única sobrevivente anos atrás a outros crimes violentos em Shadyside, esperando que ela possa explicar o que a fez se salvar da maldição de Sarah Fier para ajudarem Sam. Quando esse encontro acontece, C. Berman desenterra de suas memórias o relato do que aconteceu a ela e a sua irmã no acampamento de Nightwing. Naquele local, dezesseis anos atrás, diversos jovens foram vítimas de um assassino psicopata e seu machado.

Novamente o roteiro de Leigh Janiak e R. L. Stine coloca as divergências entre Shadyside e Sunnyvale como pano de fundo para a história de terror contada. Se na parte um, tais diferenças flertavam com questões sociais e econômicas relativas às sensações de segurança e prosperidade, na parte 2, o contraste provém do bullying praticado entre os adolescentes de Sunnyvale. Apesar de o acampamento de verão ser um local de diversão e relaxamento, os habitantes de Shadyside são desqualificados dentro de estereótipos recorrentes (a jovem rebelde, o nerd, o gordinho atrapalhado…) e os moradores da cidade vizinha não aceitam perder as competições para quem eles julgam ser inferiores por acreditarem na maldição de Sarah Fier. As protagonistas Ziggy e Cindy são alvos simbólicos dessa atitudes: a primeira é constantemente chamada de bruxa por não se enquadrar no comportamento esperado pelas demais jovens ou por confrontar quem a ameaça; já a segunda é diminuída como alguém incapaz de ser valorizada pelo que faz por vir de um lugar marcado pela violência e por crenças supostamente irracionais.

O cenário, então, está estabelecido: um acampamento de verão que deveria ser o palco para a diversão de jovens, basicamente preocupados com festas, drogas e sexo, torna-se um local de violência extrema quando um serial killer começa a praticar seus crimes. Leigh Janiak se apropria sem maiores receios da premissa e da ambientação de filmes como “Sexta-feira 13” e de vilões icônicos como Jason Voorhees (o assassino mascarado, o gore, aas vítimas adolescentes e os subtextos moralistas). Dessa vez, as referências aos slasher são diretas e explícitas, não restam dúvidas de onde a diretora busca suas inspirações nem correndo riscos de soar genérico e vago (como acontecia no primeiro filme). Isso porque a narrativa apenas parece embarcar no puritanismo de slashers clássicos, daqueles que salvam a moça virginal obediente das regras e pune todos os outros jovens interessados em prazeres carnais, mas subverte as aparências. Na realidade, a escolha das vítimas e as formas como as mortes acontecem ironizam o moralismo religioso e seguem uma lógica coerente com o universo diegético de Shadyside.

Quando os assassinatos ocorrem em abundância, há mais elementos capazes de atualizar uma dinâmica evocativa de “Sexta-feira 13” sem dispensar totalmente características marcantes. Em certo sentido, a narrativa mantém o grafismo presente na violência do subgênero, portanto a câmera não afasta o olhar do espectador do gore resultante da brutalidade das mortes – assim, o impacto dos golpes produz ferimentos severos, corpos mutilados e a exposição de sangue e vísceras -, mas também busca outra estética para encenar as ações do vilão. Ao invés de investir na construção gradual da tensão que antecederia os ataques, a produção prefere uma abordagem mais direta e econômica que já se evidencia na presença de apenas um assassino, diferentemente da parte um (se os ataques são os momentos essenciais, Leigh Janiak reduz o tempo da preparação do crime e parte para o clímax em si). A criação de uma atmosfera, quando existe, depende menos do suspense oriundo da chegada do vilão e mais da transformação de um acampamento ensolarado para um acampamento banhado pela escuridão ameaçadora da noite.

Porém, nem toda atualização proposta se mostra expressiva para a dramaturgia ou para a concepção estética. Por mais que o elenco principal seja mais coeso e desperte maior empatia do público (algo ausente na parte um), especialmente por conta da interação entre Sadie Sink, Emily Rudd e Ted Sutherland, as tentativas de dar maior peso emocional aos conflitos soam deslocadas. Enquanto Shadyside é tratada como uma cidade amaldiçoada que afeta negativamente seus habitantes na relação com pessoas de fora, como se ela gerasse para os moradores uma herança maldita difícil de lidar, os resultados são interessantes. Já nas ocasiões em que a “maldição” se relaciona com a dinâmica familiar das irmãs Cindy e Ziggy, não é possível sentir as divergências existentes entre elas como algo tão palpável nem se envolver com os dilemas em seus passados. Trata-se, portanto, de um aspecto adicional que não se coaduna tanto com a dimensão central do slasher, o que fica evidente no descompasso gerado pela cena em que um discurso edificante sobre a salvação de Shadyside antecede o confronto contra o assassino.

Descontando-se os instantes pontuais em que essa dramaturgia mais emocional ocupa o centro do plano, Leigh Janiak desenvolve a trama conseguindo conectar de modo mais coeso o slasher e o sobrenatural. Esta segunda dimensão é muito beneficiada pela reorganização de uma mitologia que, anteriormente sofria com os excessos de regras que se transformavam continuamente, e agora fica contida a um diário simbólico para explicar a maldição de Sarah Fier e como enfrentá-la. Por sinal, a combinação entre as duas dimensões também ajuda a narrativa a transitar entre as três épocas de maneira consistente: primeiramente, a regressão de 1994 para 1978 ocorre através do fluxo da memória de C. Berman e de seu testemunho, em seguida, o retorno maior para 1666 é fruto da influência sobrenatural que transporta para o passado distante personagens e espectadores. Através desses recursos de roteiro, o filme se protege contra os riscos de parecer uma antologia desconexa ou de depender de uma amarração frágil entre os três períodos.

Embora o encerramento da parte dois volte a empregar o recurso das séries de anunciar parte do que ainda deve vir, “Rua do medo: 1978 – parte 2” é uma experiência mais divertida para os fãs do terror. O segundo capítulo da trilogia possui personagens mais cativantes, um universo sobrenatural organizado e contido, referências mais expressivas para o subgênero slasher e a releitura de subtextos para uma contemporaneidade não mais afeita ao moralismo dos anos 1980 no cinema ou interessada em uma dinâmica diferente da simples emulação. Se os flashes anunciadores da parte final do projeto são já são esperados para concluir o filme, pelo menos também são capazes de sugerir possibilidades interessantes para o que pode acontecer em 1666 e em relação a filmes de bruxaria. Que não seja simplesmente a expectativa não concretizada por um episódio promissor.