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“SAFE” – Possibilidade de sair do mainstream

Suspense é um gênero difícil para qualquer escritor. A partir do momento em que o espectador toma ciência de que há um mistério a ser solucionado, a forma como ele encara a obra se altera, pois ele fica mais atento aos detalhes. É aí que reside a dificuldade do suspense: enganar o espectador já atento. A série SAFE usa técnicas refinadas para causar surpresa, porém há um exagero prejudicial.

O protagonista da série é Tom Delaney, um cirurgião pai de duas filhas adolescentes que se esforça para se aproximar delas após o falecimento da sua esposa e mãe das meninas, há um ano. Certo dia, a filha mais velha, Jenny, não retorna para casa após sair com os amigos. Desesperado, Tom inicia a investigar o sumiço, sem saber que está prestes a descobrir muito sobre várias pessoas que o cercam. Trata-se de uma trama de revelação criada por Harlan Coben, experiente e bem-sucedido autor de suspenses renomados (a autoria dos episódios, contudo, a depender do episódio, coube a Danny Brocklehurst, Mick Ford, Alex Ganley e Karla Crome).

Partindo da premissa que o público estará atento às pistas quanto ao desaparecimento de Jenny, Coben recheia o texto com red herrings, foreshadowings, flashbacks e armas de Chekhov para gerar uma confusão mental. Nos dois primeiros episódios – de um total de oito -, são lançados indícios enigmáticos e sem conexão aparente, que vão se espalhando e dando à trama maior envergadura. Nesse começo, o espectador ainda não sabe o que é um rastro enganoso, que chama a atenção na direção errada (red herring), o que é um rastro verdadeiro indecifrável ou imperceptível quando aparece (foreshadowing) e que elemento será repetido para justificar uma aparição pretérita (arma de Chekhov). É nessas três formas que os flashbacks costumam aparecer, em especial nos primeiros minutos de cada capítulo – na prática, mostram uma cena real que deveria esclarecer os fatos, mas que deixa o público em dúvida ainda maior.

Os três elementos narrativos dificilmente são bem utilizados na ficção em geral. Aqui, como eles são motores da própria trama, é um pouco cansativo ter mais e mais pistas em um terreno cujo desfecho é bastante incerto – a revelação final, por exemplo, é praticamente impossível de ser descoberta pelas evidências fornecidas, pois apenas o protagonista tinha o conhecimento-chave necessário (o que não impede suspeitas). A bem da verdade, é no último capítulo que tudo faz sentido, em um momento raro de reconstituição linear dos fatos. Para ludibriar mais o espectador, algumas personagens secundárias nunca revelam tudo o que sabem em uma primeira fala, reaparecendo depois para dar novos indícios sobre os mistérios criados. Note-se: “os mistérios” – o roteiro pulveriza o objeto de suspense em vários, sendo óbvio que há conexão, todavia bem difícil de desvendar.

Por outro lado, há um claro excesso nos enigmas; alguns deles, os periféricos, mesmo quando resolvidos, não permitem decifrar o que aconteceu com Jenny. Outro reflexo do excesso reside em uma inverossimilhança, pois soa no mínimo estranho o fato de Tom não saber nada da sua esposa e das suas filhas (o que ele admite expressamente) – enquanto a primeira era onisciente. Se o texto evita o uso de deus ex machina – que praticamente não existe, salvo não uma, mas duas fugas malsucedidas em razão de atropelamentos leves -, o método investigativo do protagonista é questionado à medida que ele utiliza algumas vezes ferramentas que poderiam ter sido utilizadas desde o princípio. Além disso, algumas personagens aparecem e somem aleatoriamente, como Carrie, a filha mais nova de Tom, e Pete, seu melhor amigo (que apenas uma vez tem justificativa para o “sumiço”).

O roteiro se preocupa em criar arcos dramáticos para a maioria das personagens, mesmo as de menor relevância. Michael C. Hall é o responsável por dar vida ao protagonista (sendo também coprodutor executivo): o ator não está no auge da carreira, mas faz o suficiente no papel, que não exige muito dele. Amanda Abbington tem uma dificuldade maior ao interpretar Sophie, coadjuvante multifacetada que se divide, literalmente, entre o trabalho policial, o cuidado com os filhos e a vida pessoal (em especial do ponto de vista afetivo). Abbington vai bem mesmo quando há uma mescla dessas esferas da sua vida, explorando as camadas da personagem. Marc Warren interpreta Pete, cujo arco dramático poderia render talvez um episódio inteiro para ele. O texto, inclusive, se torna mais convincente ao mostrar que todos têm vida além do sumiço de Jenny.

Audrey Fleurot melhora no decorrer dos episódios, em especial após um acontecimento que muda muito sua vida, porém, antes disso, a atriz parece anestesiada como Zoé. Seu marido Neil tem uma trajetória semelhante quanto aos eventos, mas a explosão interpretativa de Joplin Sibtain é impressionante – Neil é uma das personagens mais intrigantes, enquanto Sibtain é enorme destaque na atuação precisa. Em outro núcleo familiar, Nigel Lindsay dá trejeitos extravagantes e é caricato ao interpretar Jojo, o que, contudo, faz sentido por tratar-se de um papel cujas falas constantemente envolvem piadas (até seu figurino é peculiar). Amy-Leigh Hickman atua como Sia, filha de Jojo, destacando-se como a melhor do elenco juvenil ao transmitir racionalidade e frieza convincentes.

O ponto de vista familiar é pertinente porque, de certa forma, “Safe” é sobre relacionamentos familiares, o que se verifica logo no primeiro episódio: Tom tem dificuldade para se relacionar com Jenny, o que o motiva a invadir a privacidade da filha a pretexto da segurança (outro tema bastante abordado na série); o protagonista precisa ocultar um novo relacionamento (o que, por sua vez, tem relação com o luto – no sentido de que cada um lida com a morte da sua maneira -, outra matéria presente na produção); e Chris, namorado de Jenny, tem seu comportamento explicado (ao menos em parte) pela interação tormentosa em seu lar. Enquanto os episódios transcorrem, novas formações familiares são sugeridas em meio a relacionamentos extraconjugais, chantagens e drogadição – do que se extrai que a série retrata a realidade sem rodeios.

A direção de Daniel Nettheim, Julia Ford e Daniel O’Hara (a depender do capítulo) é discreta, normalmente errando ao tentar inovar, com closes despropositados e alucinações sem nenhuma função narrativa. Apesar das várias virtudes do roteiro, o design de produção é pobre, da mesma forma em que a fotografia não explora o potencial da gelada Inglaterra (visualmente, a frieza geográfica se faz presente mais em razão da respiração das personagens do que por elementos estéticos). O ápice formal está na animação em que aparecem os créditos no início, dando peças que fazem parte do mosaico bagunçado que a narrativa aparenta ser. O nome “Safe” é bastante provocador, ainda mais ao aparecer escrito em um portão durante a animação – e considerando também que a segurança almejada pelo protagonista é pura ilusão. Trata-se de uma produção chamativa para quem quer sair do mainstream, mas não é o melhor exemplar do suspense.