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“SAINT MAUD” – A busca insana por uma razão de ser

No cinema de terror, quando a origem da ameaça é espiritual ou ligada a alguma de crença há construções muito recorrentes. O horror, em geral, vem de uma religião pagã desconhecida e “exótica” ou da iconografia cristã em torno do mal e do inferno. Reconhecendo tais tendências, SAINT MAUD inverte a abordagem do folk horror e cria uma visão aterradora do fanatismo cristão no que poderia ser o bem e a salvação a priori: a fé irrestrita em Deus e a procura por um caminho redentor.

(© Studiocanal UK / Divulgação)

De maneira cuidadosa e lenta, a narrativa oferece uma porta de entrada crescentemente provocativa para a mente, alma e coração de Maud. Ela é uma cuidadora particular, que deixou de trabalhar em clínicas (por alguma razão violenta sugerida, mas não diretamente explicada), e agora atende a ex-dançarina e coreógrafa Amanda, vítima de câncer. Decidida a salvar a alma de sua paciente, a enfermeira extremamente religiosa se torna obcecada em compreender e executar os planos de Deus para ela.

Os primeiros minutos já são suficientes para indicar que Maud não é simplesmente uma pessoa de fé, mas uma fundamentalista com uma relação distorcida com Deus. Através do uso eficiente da narração em voice over, o roteiro de Rose Glass demonstra como a protagonista apenas se sentiria satisfeita com algo grandioso em sua vida (“Perdoe minha impaciência, mas espero que o Senhor revele qual é Seu plano para mim logo. Sinto que o Senhor me salvou para algo maior do que isso”). Além do vazio e da solidão que carrega, ela é também reprova o prazer sexual que Amanda tem por outra mulher (pode existir um preconceito em relação à orientação sexual, mas também há o medo em relação à satisfação de desejos carnais que supostamente corromperiam a alma). Neste aspecto, é interessante notar como as danças sensuais de Amanda, registradas em cartazes e vídeos, despertam reações contraditórias da enfermeira (um misto de interesse e temor).

À medida que avança a busca de Maud por um papel maior, sua trajetória revela outras mazelas em sua relação com a religião. A narração em voice over aparece pontualmente para aprofundar os sentimentos paradoxais perante Deus; rápidos flashbacks contextualizam a provável culpa decorrente de ações questionáveis no hospital; delírios cada vez mais grandiosos confundem sua realidade e projetam um desejo incontrolável de sentir Deus dentro de si; e cenas de autoflagelação simbolizam a crença de que deve se punir e purgar os pecados. Assim, a também diretora Rose Glass constrói uma jornada de enlouquecimento que se traduz, por exemplo, nos fatos ocorridos desde a saída da casa de sua paciente até a “revelação” de sua missão – esses momentos articulam a desorientação da personagem, capaz de procurar o prazer e o castigo em poucos instantes, com a decupagem conscientemente caótica de planos que mudam rapidamente de angulação.

Como o olhar da protagonista é essencial para a derrocada de sua sanidade, Morfydd Clark contribui significativamente para criar uma espiral descendente. A atriz capta como cada etapa desse percurso pede ações e reações específicas: o comedimento inicial de uma mulher que parece apenas querer algo mais de sua fé; o descontrole de um moralismo que a faz impor condutas “puras” às outras pessoas; as turbulências causadas pelos tormentos que enfrenta quando perde o rumo e não encontra recompensas para sua abnegação; e a convicção assustadora que vem com a suposta descoberta de um novo mundo para ela. Por dentro de todas as nuances, Morfydd Clark confere uma aura de mistério que torna enigmático seu background e imprevisíveis seus comportamentos.

Enquanto o roteiro e a evolução dramática compõem a trajetória de Maud, a cineasta define em muitos sentidos um efeito claustrofóbico para a narrativa. De modo imediato, os conflitos se sucedem dentro de espaços fechados, a residência de Amanda e o apartamento da protagonista, e as transformações da enfermeira partem de situações muito diferentes de sua rotina em restaurantes e quartos de motel. Além disso, a ambientação dos cenários é opressiva e sem esperanças de saída, particularmente graças a uma fotografia composta pela escuridão quase total e por tons vermelhos intensos, que reforça os paradoxos entre redenção espiritual e postura fanática. Até em nível simbólico, essa ideia se expressa nas cenas em que a câmera destaca as imagens religiosas produzidas pelo pintor inglês William Blake e as relaciona à jornada da personagem.

Por sinal, a claustrofobia também assume um viés alegórico sempre que o estado mental de Maud é representado em tela. O espectador é colocado no ponto de vista da enfermeira e se sente oprimido pela crença distorcida de que Deus seria vingativo e pela percepção de que atos violentos poderiam ser justificados por um bem maior. Essa opressão se manifesta visualmente quando a obra se apropria de convenções mais explícitas do terror gradualmente: inicialmente, Maud parece estar em um êxtase religioso ao sentir a presença divina ao seu redor; em seguida, a violência de seu fanatismo fundamentalista é liberada, por vezes de forma imaginativa, por vezes de maneira real resultante de delírios incontidos. Logo, a diretora concilia o naturalismo dos primeiros atos com os momentos gráficos e irreais através de uma abordagem de deterioração da personagem.

Definindo-se como um terror psicológico, “Saint Maud” consegue tornar cada minuto expressivo apesar do ritmo lento que poderia ser um desafio adicional. Porém, o filme sabe lidar com sua dinâmica específica e com eventuais controvérsias que poderiam surgir da criação do horror a partir do fundamentalismo cristão. Isso porque a iconografia cristã mobilizada (cruzes, imagens de Jesus Cristo crucificado e asas de anjo) atende à ideia de que o grande medo seria não haver uma razão maior para a vida – no último diálogo entre Maud e Amanda, fica evidente que a jovem se aterroriza diante da possibilidade da existência seguir o caos e não uma ordem prévia. Por isso, é assustador confrontar nas últimas sequências a perspectiva deformada da protagonista com o horror de flashes da realidade.