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“SUPERMAN: O FILME” (1978) – O exemplo e o símbolo de super-herói

Quando se fala em super-herói, aquele que está entre os primeiros que vêm à mente é o Superman. Já quando se fala em filmes de super-herói, o natural é pensar na longa lista do Universo Cinematográfico Marvel – do qual ele não faz parte. Muito antes do UCM, porém, SUPERMAN: O FILME, de 1978, já estabelecia as bases para os filmes do que viria a se tornar um gênero no cinema, apresentando a essência do significado dessa expressão.

Diante do iminente colapso do planeta Krypton e do fim da sua civilização, Jor-El envia o seu filho ainda bebê para a Terra, onde ele poderia habitar mesmo sendo um alienígena órfão. Acolhido por um casal sem filhos, ele cresce como Clark Kent, mas escondendo a identidade secreta de um poderoso super-herói.

(© Warner Bros. / Divulgação)

Narrativamente, o filme dirigido por Richard Donner é dividido em três fases. Na primeira, a personagem principal é Jor-El, recebendo bastante tempo de tela provavelmente em virtude de seu intérprete, Marlon Brando (que já tinha enorme reconhecimento na indústria). Na fase intermediária, Clark (em uma versão jovem) assume centralidade, mas ainda sem ter criado o alter-ego e sem detalhes sobre a sua origem (razão pela qual não sabe ainda a amplitude de seus poderes). É na terceira fase do longa, que ocupa o maior tempo de tela, que ele se torna realmente interessante, pois é quando Clark cria o Superman.

As duas identidades parecem antípodas habitando o mesmo corpo. Em sua versão humana, Kal-El – conhecido publicamente como Clark Kent – é um homem tímido e extremamente desajeitado (como ao abrir uma garrafa ou passar por uma porta giratória) que ainda está dando os seus primeiros passos em Metrópolis, a cidade que passará a proteger depois de sair do lar bucólico em que morava com os pais adotivos. Na versão kryptoniana, diversamente, ele é Superman, um homem com poderes físicos quase ilimitados e consideravelmente extrovertido (basta ver a entrevista que concede a Lois, com quem consegue flertar com facilidade). O visual é capaz de colocá-los em lados opostos: o primeiro usa roupas formais, óculos de grau e cabelo liso impecavelmente penteado; o segundo, fiel às HQs, veste um traje pouco discreto (com a sunga por fora da calça), tira os óculos e deixa o cabelo ondulado. Entretanto, o que é mais fascinante nessa coexistência é a atuação de Christopher Reeve, que realmente se transforma em dois sujeitos absolutamente distintos. O momento em que isso fica mais claro se dá na casa de Lois, quando, em uma metamorfose, Clark tira os óculos, deixa o corpo ereto e fala usando um timbre mais grave para talvez anunciar que é o Superman. O trabalho de interpretação de Reeve é notável.

Do ponto de vista estético, a obra é excelente. Ainda que o VFX não seja o mesmo de um filme de hoje, os efeitos envelheceram muito bem, impressionando a qualidade para a sua época (o uso de efeitos práticos, a propósito, serve de auxílio para a qualidade, tal como na cena do helicóptero). O design de produção é sublime em razão da sua versatilidade. Os créditos iniciais à la “Star Wars” servem de ponte para o público que, como se estivesse viajando pelo espaço, chega a uma Krypton marcada por colunas retas e muito branco (como o neon do figurino dos kryptonianos e a iluminação demasiado alva). Posteriormente, Kal-El está em um cenário campesino, no qual a fotografia arenosa dos campos de centeio ajuda a construir o backstory do Superman. A Fortaleza da Solidão repete a arquitetura de Krypton com cristais e gelo bem brancos. Nos dois casos, a imagética não se confunde com a cinzenta Metrópolis, que também destoa do esconderijo secreto de Lex Luthor, o divertido e excêntrico vilão vivido por Gene Hackman. Tudo em Lex é único, do seu figurino escalafobético à inegável inteligência, além da escolha da morada, um local subterrâneo com recintos amplos e intensa decoração. Ainda na estética, quem assina as composições da trilha é ninguém menos que John Williams, que tem na Leitmotiv do super-herói uma de suas melhores peças. De modo geral, as músicas conseguem fazer com que o filme cresça vertiginosamente (por exemplo, quando Superman salva Lois ou quando eles voam juntos). Não se olvide, ainda, da sagaz edição de som, que vai dos coerentes ruídos de vidro se quebrando na cena em que Krypton é destruída ao pomposo eco na voz de Jor-El na Fortaleza da Solidão.

Superman: o filme” é uma obra completa (o único deslize de relevo ocorre ao final, em que um novo poder é exposto de uma forma que não faz sentido). Seus predicados poderiam se limitar às linhas acima para ser um ótimo longa, mas a produção conta ainda com um roteiro muito bem elaborado. Trata-se de uma exceção, dada a quantidade de roteiristas, que geralmente é mau sinal: Mario Puzo (também autor da história), David Newman, Leslie Newman, Robert Benton e Tom Mankiewicz (não creditado). O texto, que trabalha com uma alegoria antiarmamentista em plena Guerra Fria, compreende que o Superman é um exemplo nas palavras (ao declarar que “não (se) pode solucionar os problemas da sociedade com uma arma”), mas também nos atos (ao dividir seu salário com Martha). Seu grau de superioridade em relação à falibilidade humana é tão grande que ele serve como uma metáfora para Jesus Cristo, o que é ressaltado por falas sugestivas (ao aconselhar um criminoso a se confessar ou a comparação da “entrevista” concedida por Deus a Moisés mencionada por Perry White), mas também de maneira direta (“o filho transforma-se no pai e o pai se transforma no filho). Diante disso, imperioso que Kal-El não esteja destinado a ser um mero estrangeiro, mas um símbolo que justifique a sua existência na Terra, servindo de inspiração para aqueles que desejam fazer o bem. Nas suas próprias palavras, o que ele faz com seus poderes sobrenaturais é “lutar pela verdade, pela justiça e pelo american way of life”. Não há nada (nem ninguém) mais super-heroico.