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“TICK, TICK… BOOM!” – Encontrando o tom da homenagem

Jonathan Larson foi um compositor nova-iorquino que escreveu um dos mais famosos musicais da história, “Rent“. Tendo ficado em cartaz na Broadway por 15 anos seguidos, o espetáculo ganhou diversos prêmios, entre eles três Tony Awars, um Pulitzer e um Drama Desk Award. A grande infelicidade foi o criador de “Rent” não poder receber os prêmios nem acompanhar as apresentações, já que faleceu precocemente aos 35 anos por conta de um aneurisma cerebral. Antes disso, passou oito anos de sua vida escrevendo uma peça de ficção científica enquanto trabalhava meio período em uma lanchonete e atravessava uma crise pessoal dias antes de completar 30 anos. Este é o recorte escolhido por TICK, TICK… BOOM! para homenagear os musicais.

(© Netflix / Divulgação)

O sonho de Jon é criar o próximo musical de grande sucesso em Nova York, que poderá levá-lo ao estrelato. Porém, quando seu amigo e colega de quarto Michael se muda para aceitar um emprego na área de marketing e sua namorada Susan recebe uma oferta de trabalho em outra cidade, o mundo de Jon começa a ruir. Ele é tomado pela ansiedade de achar que seu sonho possa ser irreal e seus esforços inúteis, em um momento em que se questiona a respeito do fim da juventude às vésperas do aniversário de 30 anos. Em meio a tudo isso, produz também materiais que viriam mais tarde a ser a base para outra peça, “Tick, tick… boom!

Sob o comando de Lin-Manuel Miranda, o filme assume uma abordagem biográfica de homenagem a Jonathan Larson. O diretor admira e reverencia de tal forma o artista que parece precisar urgentemente utilizar os recursos narrativos, fazendo assim a abertura soar caótica ou desencontrada. Em dado instante, a narrativa encontra seu princípio dramático e estético, mas inicialmente o conjunto oscila entre diferentes registros visuais. Há três elementos que se entrelaçam: imagens de arquivo (encenadas ou não) de Jonathan em uma razão de aspecto menor; a narração em voice over do protagonista durante a montagem no teatro “Tick, tick… boom!” no futuro narrativo; e a encenação fílmica com os números musicais da trajetória pessoal e profissional da personagem. Leva algum tempo até Lin-Manuel Miranda estabelecer a coesão entre os três recursos em uma obra não linear, que transita por temporalidades e estéticas distintas.

A definição de como a produção abordará seu biografado e impactará os espectadores também leva um tempo a se consolidar por conta da construção dos números musicais. Algumas sequências cantadas não exploram todo o potencial cênico e dramatúrgico do momento e se tornam uma exposição sem criatividade da trama (a canção interpretada no palco por Andrew Garfield, Vanessa Hudgens e Joshua Henry simplesmente resume os conflitos do protagonista com outras personagens) ou esvaziam a força dramática de uma cena importante (a discussão entre Jon e Susan é prejudicada pela montagem paralela da canção “Terapia” interpretada de modo exagerado por Andrew Garfield e Vanessa Hudgens). À medida que o filme avança, estas sequências discutíveis cedem lugar para construções mais poderosas que complementam a trama e criam uma espécie de realismo mágico: a apresentação do rico apartamento de Michael com a canção “Não mais” e um movimentado dia de trabalho na lanchonete com a canção “Domingo“. São dois exemplos que simbolizam os anseios de Jon e o poder imaginativo de um musical que insere músicas ao cotidiano comum.

Quando o tom da homenagem fica mais bem delineado, a atuação de Andrew Garfield cresce. A princípio, o trabalho do ator parece remeter ao seu desempenho de “O mistério de Silver Lake” porque, assim como no projeto anterior, ele cria uma figura excêntrica sobretudo nas ações e expressões durante as sequências musicais. Com o tempo, as excentricidades são deixadas de lado e o intérprete enfatiza a humanidade tão identificável de Jonathan Larson, dedicando-se à alegria de quem ama seu trabalho, à insatisfação de quem não vê seu talento reconhecido e ao sofrimento de quem sente seus próprios insucessos e as dores dos amigos. Mesmo que a questão da idade com a perda da juventude seja parte do roteiro assinado por Steven Levenson, a narrativa ganha força ao abordar a entrega absoluta de um artista ao seu processo criativo a partir de suas contradições e desdobramentos nem sempre positivos.

Estas contradições dizem respeito, principalmente, à maneira como Jon se aliena em relação aos problemas e dilemas das pessoas que ama. O protagonista se fecha em seu próprio mundo de audições para a montagem de “Superbia” e para a difícil escrita de mais uma canção para a peça, levando-o a negligenciar a namorada enquanto esta se divide entre aceitar a nova proposta de trabalho ou permanecer na cidade onde vive e no emprego que tem. Além disso, ele mal se dá conta de como muitos de seus amigos homossexuais sofrem com a AIDS, o preconceito e a ausência de direitos civis por culpa de governos reacionários – vale a pena ressaltar como a narrativa pontualmente traz à tona referências a esse contexto histórico do início da década de 1990. As duas subtramas parecem adormecidas e periféricas até o instante em que ganham o primeiro plano e abrem espaço para sequências dramáticas eficientes, capazes de organizar uma estrutura narrativa e estética até então instável.

Logo, a transição do segundo para o terceiro ato abraça de vez os conflitos dramáticos decorridos do desejo de Jon de ser um artista bem-sucedido. Por um lado, o compositor enfrenta dificuldades financeiras ao se recusar a ter um trabalho em tempo integral enquanto o espetáculo não se desenvolve (a energia de seu apartamento é cortada por falta de pagamento). Por outro lado, ele percebe da maneira mais grave que seus problemas não são os únicos nem os mais sérios do mundo, afinal outros indivíduos podem encarar riscos para suas vidas e para sua felicidade. Nesse bloco, o filme proporciona as melhores sequências musicais que carregam na intensidade dramática e podem comover, especialmente aquela que relembra a amizade entre Jon e Michael através da canção “Por quê” apresentada em um piano em um teatro vazio e aquela que encerra a produção através da canção “Mais alto que palavras” apresentada no palco pelo protagonista. Com esse desfecho, o diretor sintetiza seu projeto com a ideia de que a homenagem a Jonathan Larson também se deve por sua persistência em criar um sucesso amplamente reconhecido, a despeito do infortúnio de isso ter acontecido após sua morte, sem menosprezar quem está ao seu redor.

Tick, tick… boom!” faz parte de um conjunto de produções que abordam as crises existenciais resultantes de bloqueios criativos para artistas de diferentes ramos, como “Oito e meio” de Federico Fellini e “Nine” de Rob Marshall. Diferenciando-se ligeiramente dos dois filmes citados, a obra disponível na Netflix escolhe prestar um tributo a um dos nomes mais renomados e cultuados do teatro musical contemporâneo nos EUA. Nesse sentido, Lin-Manuel Miranda encaminha seu trabalho para destacar o legado que Jonathan Larson deixou, resgatando passagens menos conhecidas de sua vida antes do sucesso. Ainda que as intenções sejam louváveis e relevantes, chegar à chave da narrativa leva um tempo, mas ao chegar, consegue articular as imagens de arquivo, a narração em voice over e a dramatização musical para referenciar aquele que marcou seu nome na história.