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“TRAMA FANTASMA” – Roteiro mal construído

A doutrina que versa sobre análise narratológica costuma distinguir os seguintes conceitos: tema, assunto e mensagem. Partindo dessas três categorias teóricas, é possível concluir que TRAMA FANTASMA é um filme frívolo do ponto de vista do seu roteiro mal construído.

O longa se passa na década de 1950, período em que Reynolds Woodcock é um estilista de sucesso, tendo sua irmã Cyril como seu braço direito. Reynolds escolhe a dedo as mulheres que vão inspirar seus trabalhos, porém sua nova musa, Alma, abala toda a sua rotina.

A direção de Paul Thomas Anderson é muito boa, prestando atenção em cada detalhe e na criação da atmosfera de desconforto que prevalece na maior parte da duração da película. A direção de arte é esplendorosa, com maravilhosos figurinos, o que não surpreende, em se tratando de um filme que tem um estilista como uma das personagens principais. Porém, como o elenco é quase exclusivamente feminino, os vestidos são realmente deslumbrantes, enquanto as roupas masculinas são mais ordinárias, ainda que belas. A trilha sonora é boa, com músicas instrumentais que conseguem acompanhar bem o ritmo dado por Anderson. Chama a atenção a fotografia estupenda no trabalho de iluminação: quando Reynolds faz um vestido para Alma, por exemplo, há um foco central de luz, com sombras às margens do campo, dando realismo ao plano.

O elenco conta com um trio muito afinado: Daniel Day-Lewis como Reynolds, Vicky Krieps como Alma e Lesley Manville como Cyril. Elogiar Day-Lewis é dispensável: o ator vai bem em qualquer papel, mesmo que se trate, como nesse caso, de uma personagem sem grandes encantos dramáticos. Krieps, por outro lado, tem um papel mais desafiador, já que Alma é uma personagem que demanda sentimentos intensos e peculiares, como desespero, insegurança, insatisfação, insistência e perspicácia. Cyril é detalhista como seu irmão (a ponto de conseguir definir especificamente os odores de uma pessoa), todavia sua participação é diminuta, tornando a interpretação de Manville mais unidimensional, ainda que de boa qualidade – isto é, sempre séria e fria, não se rebaixando perante ninguém. A grande importância de Cyril é o fato de manipular muito a vida de Reynolds, o que afeta bastante a sua personalidade e põe em xeque a construção da personagem no roteiro.

É verdade que a discussão fica explícita, pois embora o próprio Reynolds afirme para Alma que é forte, ela diz que ele apenas finge ser forte. O fundamento do estilista é que são as expectativas e as decepções sobre as pessoas que causam mágoas, o que é coerente com o seu discurso. Entretanto, em vários momentos fica claro que ele é marionete da irmã, o que pulveriza a sua personalidade e o descredibiliza por completo. Ainda que isso não aconteça sempre, ocorre em momentos-chave: logo no início, quando ele acata uma sugestão dela de se deslocar enquanto ela resolve um problema para ele; e mais adiante, quando o discurso de Cyril é no sentido de que ele não é capaz de enfrentá-la e de que ela é quem tem a palavra final, fazendo-o se calar. Usando a terminologia de Greimas, embora Reynolds seja sujeito e receptor (interpretando Alma como objeto no esquema actancial), é Cyril quem realmente importa, já que transita como actante em mais funções (notadamente doadora, adjuvante e opositora). Porém, como o roteiro renega a Cyril espaço secundário, a trama se torna pouco confiável, afinal, se ela quisesse, poderia mudar toda aquela situação.

Vale dizer, o roteiro se equivoca ao atribuir tamanho poder decisório a uma personagem que deveria ser secundária. Se a função de Reynolds é de sujeito e receptor, ele é quem deveria deter maior poder decisório; se, por outro lado, Cyril tem maior margem para condicioná-lo, precisaria ganhar maior espaço, maior desenvolvimento de personalidade e um arco dramático próprio. Em síntese, não faz sentido que uma coadjuvante de somenos importância no texto tenha tamanha interferência virtual, sob pena de instabilidade do próprio texto. A ideia segundo a qual “se ela quiser, ela acaba com tudo isso agora mesmo” tem a possibilidade de ficar perene na mente do espectador. E pior: em uma das cenas essa premissa é quebrada, em inaceitável incoerência <<SPOILER ALERT: (se ela não aceita discutir com Reynolds e se ele se sujeita a ela, a cena do médico é um paradoxo do script FIM DO SPOILER)>>.

O roteiro também é falho por apresentar um assunto frívolo e uma mensagem vazia, apesar do tema interessante. Os autores de narratologia ensinam que tema é uma ideia genérica sobre a qual a história versa, consistindo em um substantivo abstrato, enquanto assunto é o tema de maneira concreta, ou seja, seu desenvolvimento na narrativa, expressado por um substantivo (ou expressão substantiva) concreto(a). A mensagem é um conceito mais simples, resumida em geral por uma frase que sintetiza o que se extrai da história. Nada impede que a narrativa tenha mais de um tema, mais de um assunto e mais de uma mensagem. No caso de “Trama Fantasma”, o tema é o relacionamento interpessoal; o assunto é a interação entre Reynolds e Alma; a mensagem fica aqui omitida para evitar um spoiler referente ao desfecho. O tema não é ruim, mas é mal abordado por um assunto sem transcendência social nenhuma (ou, com mais critério, ideologicamente retrógrado) e com uma mensagem niilista. Reynolds é um estilista, vive em um mundo de futilidade, cercado de pessoas ricas e nobres e trata as pessoas – em especial as mulheres de sua vida – como objetos. Não obstante, Alma se despe do amor próprio e pateticamente se humilha, pleiteando por atenção e afeto.

O filme inteiro consiste na rejeição de Reynolds para com o afeto demandado por Alma (ao menos da forma que ela deseja), de um lado, e na demanda desta pelo carinho daquele, de outro – e, enquanto isso, ela aprende a admirá-lo como o grande estilista que ele é, responsável pelos vestidos de mulheres muito especiais (as mais ricas e as que detêm título de nobreza). A ênfase no endeusamento dele enquanto profissional é tamanha que os dois fazem questão de recuperar o vestido de uma cliente que, na visão deles, não mereceria usá-lo, havendo também uma cena em que uma mulher qualquer aparece dizendo que sonha em um dia usar a sua marca. O problema não é ser um filme sobre moda – até porque esse não é o tema e sim um dos assuntos -, mas forçar uma conexão entre esse assunto e o tema, que, no fundo, acaba sendo exposto de uma maneira deveras rasa – prova disso é a insatisfatória mensagem do longa.

Cabe reiterar que a estética do filme é praticamente irrepreensível: seu problema reside no roteiro. Também é recomendável mencionar que esse é um ponto de vista,  amparado em semiótica e narratologia, mas não uma verdade absoluta, já que crítica cinematográfica não é ciência exata. Logo, não se trata de uma recomendação para o leitor não assistir ao filme. A ideia, ao contrário, é propor um olhar mais apurado sobre a produção. Nesse sentido, pode-se concluir que o script de “Trama Fantasma” é realmente mal construído.