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“TRÓPICO FANTASMA” – Ciclo minimalista

Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).

O escritor italiano Ítalo Calvino publicou na revista The New York Review of Books em 1983 um artigo que dialoga, em certa medida, com TRÓPICO FANTASMA. O trabalho intitulado “A palavra escrita e a não escrita” desenvolve a ideia de que nossa percepção do mundo ao redor é constantemente atravessada pela linguagem escrita, relegando os outros sentidos e experiências sensoriais a uma posição secundária. Já o drama belga-holandês propõe uma imersão não convencional em algumas horas na vida de sua protagonista, dispensando muitos diálogos em favor dos usos simbólicos dos espaços que constituem uma grande cidade europeia.

(© Rediance/ Divulgação)

Como o próprio Ítalo Calvino pontua, é necessário retirar os olhos da página escrita e contemplar/vivenciar/sentir o mundo em suas múltiplas formas. No caso de um filme, é preciso “levantar os olhos” da sinopse ou do roteiro e experimentar outros elementos vitais para a experiência cinematográfica. Afinal, a trama é simples: Khadija deixa seu local de trabalho, rumando de volta para casa, e adormece no último trem do metrô, o que a obriga a seguir o percurso a pé à noite. No entanto, a combinação de imagens e sons da narrativa fornece uma mediação significativa para um universo diegético que escapa das definições simplistas.

Dar vazão a diversos sentidos e sensações é o que a primeira sequência pode possibilitar. Ao longo de quase cinco minutos, um plano estático mostra uma sala de estar com televisão, tapete, sofá, mesa, vaso de planta e outros objetos enquanto anoitece e o ambiente é tomado pela escuridão. Em dado momento, a narração em voice over da protagonista entra em cena para comentar que os indivíduos se relacionam com as cidades vendo o tempo passar e ouvindo os sons do entorno. A princípio, a abertura poderia ser entendida e sentida apenas como algo melancólico, uma representação de Khadija como um fantasma não percebido pela sociedade. Mesmo sendo uma percepção justificável, o diretor Bas Devos vai além e ressignifica o plano fixo e a iluminação sombria ao combiná-la com a narração que diz que somos novos e inesgotáveis, logo preenchemos os espaços com nossas vidas.

Em nível metafórico, as tais vidas poderiam ser a empatia e o altruísmo da personagem principal e o espaço qualquer grande cidade que pode oprimir e segregar. Khadija anda pela cidade após um longo dia de trabalho e, ao invés de pensar na melhor e mais segura maneira de retornar para casa, interrompe seu percurso para ajudar um homem em situação de rua, se preocupa com o cão desse homem, não denuncia um rapaz que invadiu uma moradia vazia para se abrigar e alerta dois policiais sobre uma loja que vendia bebidas para menores de idade. Ao acompanhá-la por cada rua, o espectador conhece características e informações da mulher nem sempre por linhas de diálogo, mas também através de gestos, olhares e objetos cênicos: ela é imigrante e muçulmana, trabalha com limpeza em uma empresa e tem dois filhos. Tais aspectos poderiam torná-la uma vítima em potencial, sujeita ao machismo, ao preconceito e à violência física por andar sozinha de noite por alguma parte da Europa.

A desconfiança quanto ao ambiente é problematizada pelo cineasta, que evita criar situações previsíveis de perigo. Diferentemente dessa escolha, Bas Devos evoca uma relação mais ambígua com o urbano, simultaneamente capaz de proporcionar oportunidades e de causar apreensões nos indivíduos. Por um lado, a protagonista tem um emprego e meios para chegar em casa (táxi ou ônibus), por outro, é um emprego cansativo que ocupa todo seu dia e os veículos outras máquinas que precisa podem não funcionar (o caixa eletrônico não libera o dinheiro sacado, o ônibus sofre com uma pane e a máquina de fazer chá de uma loja está quebrada). Além disso, a construção visual da cidade reforça a ambiguidade em outros níveis, alternando entre fotografia soturna carregada e uma iluminação quase mágica e sugerindo que a protagonista fica no limbo entre pertencer ou não àquele cenário – Khadija ora parece integrada às locações em planos conjunto ora parece isolada como um ponto distante quando a câmera desliza por planos mais abertos que se afastam dela.

Sob outro ângulo, o filme insiste na ideia de que a cidade não precisa ser necessariamente uma antagonista vilanizada. Se uma imigrante muçulmana pode não se sentir plenamente inserida em outro país, nem todos os moradores devem ser violentos e preconceituosos. E esta não é uma opção ingênua, pois o diretor não romantiza os encontros entre a protagonista e os personagens coadjuvantes. Todas as pessoas que cruzam o caminho de Khadija demonstram a possibilidade de haver humanidade e generosidade em grandes centros urbanos, desde os momentos de conversas triviais com o segurança de um shopping, um vizinho e uma atendente de loja até a cena em que a mulher observa sua filha com os amigos. Apesar de os assuntos conversados não serem tão especiais e a encenação ser minimalista com diálogos breves, são encontros que servem para ajudar Khadija em sua volta para casa.

O minimalismo é a característica que preenche cada estágio da narrativa que aproveita as potencialidades visuais e sonoras do cinema. O drama poderia ser um filme mudo em certa medida, quando os acontecimentos giram menos em torno de diálogos e interações entre os personagens e mais em torno das imagens captadas pela câmera: o mosaico de luzes de uma cidade grande, os closes em uma protagonista envolta por diferentes emoções, a sucessão de ambientes constitutivos de uma cidade, a apropriação do espaço por aqueles que por ali transitam e as lacunas misteriosas deixadas por vielas e encruzilhadas. Porém, se fosse completamente mudo, o filme não poderia explorar os encontros e desencontros suscitados pelos ruídos diegéticos de um dia que se encerra, pelo silêncio de uma noite que se descortina e pela trilha sonora pontualmente dramática de notas de violão dedilhadas.

Mais uma vez invocando Ítalo Calvino podemos prolongar os efeitos de “Trópico fantasma“, sobretudo uma conclusão que se abre para diferentes assimilações. O escritor italiano defende que a arte de escrever se relaciona ao desejo de possuir e dominar algo do mundo que sempre escapa, pretendendo assim dar ao mundo não escrito a oportunidade de se expressar através do artista. Se levarmos esta visão para o cinema e para o trabalho de Bas Devos, podemos considerar que os filmes produzem sentidos e impactos não apenas a partir do roteiro. Com a construção das imagens e dos sons, este drama define a narrativa como um ciclo que se inicia em um anoitecer e termina no raiar de outro dia, tendo a mesma sequência estática em uma sala de estar propondo diferentes percepções sobre uma imigrante em uma nova terra. No princípio, pode ser um sinal de não pertencimento, já na conclusão, pode ser um sonho por maior liberdade para si mesma ou para quem ama.