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“UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA” – Amizade com um herói

Mesmo não sendo inédita, a proposta de UM LINDO DIA NA VIZINHANÇA tem alguma originalidade: retratar uma pessoa real não nos moldes de uma cinebiografia, mas através de um episódio significativo da sua trajetória. De certa forma, a produção se torna ambiciosa por escolher um herói da história recente dos EUA, colocando-o, todavia, como acessório dentro de um arco dramático da personagem principal. No protagonismo, a improvável amizade entre eles.

O herói é Fred Rogers, um apresentador de programa infantil na década de 1960 que não apenas acompanhou diversas gerações como se tornou ídolo de muitas pessoas nos EUA. Como personagem principal, o jornalista investigativo Lloyd Vogel recebe de sua chefe a missão de entrevistar Rogers para uma matéria simples sobre heróis. Ao encontrá-lo, Lloyd percebe que Fred não é um entrevistado como qualquer outro, insistindo em conhecê-lo e talvez ajudá-lo com seus traumas.

(© Sony Pictures / Divulgação)

Escrito por Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue a partir do artigo escrito por Tom Junod (o verdadeiro jornalista), o roteiro é bastante funcional e, salvo alguns tropeços (por que a irmã de Lloyd desaparece após o casamento? Como a equipe de Fred sabia que Lloyd apareceria naquele momento?), eficaz na sua mensagem de conciliação. Lloyd é um homem com uma relação tormentosa com o pai, circunstância que Fred se sente impelido a mudar. Pode não parecer, mas o jornalista é uma personagem complexa: absorveu traumas do passado para guardar rancor contra o pai e se tornar, por via oblíqua, uma pessoa rancorosa.

Ou seja, Lloyd não é apenas alguém cujo relacionamento com o pai é ruim, mas que se tornou amargo justamente a partir disso. Matthew Rhys não é um ator muito bom, mas não compromete, principalmente porque, mesmo em um papel relativamente secundário (já que não é quem conduz a trama, ainda que o faça quanto à narrativa), Tom Hanks brilha com o simpaticíssimo papel que tem. Coerente com a proposta idólatra em relação a Rogers, Hanks aproxima a personagem a uma aura angelical através de uma linguagem corporal pacífica, um timbre agudo e um lento ritmo de fala – sem olvidar, é claro, características verídicas trazidas pelo script, como a natação, bem como a maquiagem de envelhecimento e os efeitos de rejuvenescimento, quando necessários. Ainda que Lloyd e Fred pareçam opostos, não são verdadeiros extremos, principalmente porque o apresentador menciona um conflito com os filhos (o que surge apenas para que ele não pareça perfeito).

Pontualmente religioso sem ser panfletário, o plot perde um pouco de força no ato final, porém adota uma estrutura narrativa bem interessante ao estabelecer um diálogo entre, de um lado, o programa de Fred, e, de outro, a vida de Lloyd (é uma metalinguagem fazendo ficção a partir da realidade). Em outras palavras, o filme faz parecer que tudo compõe um episódio do programa de Fred (com uma reconstrução estética bem fidedigna), que apresenta Lloyd como tema. Assim, quando aquele explica aos seus espectadores (crianças, vale lembrar) como é feita uma revista, a transição diegética para o trabalho deste (em uma revista) cria essa conexão narrativa.

A diretora Marielle Heller aproveita essa alternância (programa de Fred versus vida de Lloyd) para dar um visual coerente com esses fragmentos, a começar pela razão de aspecto, que fica reduzida quando Rogers está em seu programa (afinal, ele se passava na década de 1960). Assim, fica fácil compreender se a cena é uma encenação assumida (a gravação de um episódio, ou seja, a ficção dentro da ficção) ou se compõe a realidade diegética (acontecimentos externos ao programa, isto é, a ficção simples). Algumas vezes, elementos cênicos são empregados com inteligência para simbolizar essa alternância, como o avião da maquete do programa que, subindo, traduz a viagem de Lloyd à cidade de Fred.

A câmera de Heller investe no uso de zoom in em momentos dramáticos e travellings para planos longos em cenas mais lentas (como a que Lloyd acorda após a alucinação), porém o destaque visual fica mesmo com o design de produção, impecável no cenário do “Mister Rogers’ neighborhood”. Do ponto de vista sonoro, o longa é exageradamente musicado, valorizando o silêncio apenas no terço final, quando se torna um pouco mais desinteressante. Parece contraditório, mas o filme tem como cenas mais cativantes as que são mais piegas, como a do metrô. É um caso raro em que pieguice é atributo positivo por combinar com a proposta.

No final da jornada, certamente o “apresentador sentimentalista” não muito caro ao amargurado jornalista faz deste alguém mais amável e feliz. Ele melhora como pessoa. A doçura está na dose certa, sobretudo quando Lloyd compreende que Mister Rogers não é uma personagem criada por Fred. Quem não gostaria de um amigo adorável como ele!?