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“1899” – O mistério que vem do real e do inexplicável

Ao longo de três temporadas, “Dark” (clique aqui para ler a nossa crítica da 3ª temporada, e clique aqui para ler a da 2ª temporada) foi uma série que nutriu muitos espectadores de curiosidades, emoções conflituosas e teorias. O desenvolvimento ousado de uma obra que não se furta a criar mistérios inusitados e a dispensar explicações didáticas colocou os nomes da dupla de criadores Baran bo Odar e Jantje Friese no horizonte de público e crítica. A repercussão foi tamanha entre 2017 e 2020 que as atenções passaram a se voltar para o próximo projeto dos realizadores. A espera culminou na estreia da primeira temporada de 1899, um novo exemplar de mistério sci-fi, dessa vez interessado por enigmas sobre realidade, compreensão e criação.

(© Netflix / Divulgação)

Dividido em oito episódios, o primeiro ano da série acompanha os tripulantes do navio Kerberos e os passageiros de diversas nacionalidades por uma viagem pelo Oceano Atlântico para Nova Iorque no fim do século XIX. O deslocamento é interrompido após o encontro com o Prometheus, embarcação à deriva e desaparecida há quatro meses, que parecia estar totalmente vazio. Logo, estranhos acontecimentos se sucedem a ponto de elevar a tensão a bordo e de propiciar experiências capazes de gerar dúvidas sobre os limites entre o real e a loucura. Então, tentando desvendar o que ocorre, o capitão Eyk Larsen e a médica Maura Franklin começam a investigar os segredos escondidos em alto mar.

Como todo bom mistério precisa ser formado por quebra-cabeças instigantes, o seriado apresenta suas primeiras peças a partir dos diversos núcleos de personagens. Se em “Dark” as subtramas giravam em torno de segredos do passado, traições, processo de luto, ligações familiares e questões geracionais, “1899” explora os enigmas decorrentes de passageiros em viagem para os EUA que não podem retornar à Europa por conta de eventos trágicos do quais estão fugindo. Nesse sentido, os núcleos são muitos: uma médica inglesa à procura do irmão desaparecido, o capitão alemão fragilizado por uma tragédia familiar, um casal de franceses em um casamento arranjado, duas mulheres orientais envolvidas na tradição japonesa das gueixas, dois espanhóis envolvidos em uma dinâmica suspeita de tensão e uma família de dinamarqueses muito religiosa. Em teoria, os dramas pessoais deveriam despertar tanta curiosidade quanto o mistério central, especialmente por criarem figuras que ocultam suas verdadeiras identidades em função de um rastro de morte que suas vidas carregam. Na prática, esses arcos não conseguem sustentar um interesse mais duradouro ou equivalente ao conflito principal da trama.

Os enigmas propostos por Baran bo Odar e Jantje Friese começam nos segmentos de cada personagem, colocando dúvidas sobre o que seria real, o que poderia ser compreendido pelo público e como os dois criadores da série lidariam com a criação de arcos tão misteriosos para não frustrar especulações. A partir daí, a dupla também trabalha esse trinômio na sequência de eventos que preenche a trama tomando como ponto de partida a exploração do Prometheus e a descoberta de um único sobrevivente no navio. Enquanto em “Dark” o mistério levava a uma história de viagem no tempo, a nova produção da Netflix abre possibilidades para pensar se o universo diegético seria fantástico, tecnológico ou onírico. Levando em consideração que os títulos de cada episódio indicam o aspecto central que movimenta a trama (“O navio“, “O menino“, “A neblina“, “A luta“, “O chamado“, “A pirâmide“, “A tempestade” e “A chave“), o roteiro cria novos mistérios sem, necessariamente, elucidar dúvidas anteriores. Então, um menino silencioso, o defeito repentino das bússolas, uma neblina forte, mortes de causas incompreensíveis, visões fantasmagóricas, ambientes secretos do Kerberos, uma onda sucessiva de mortes e outros tantos fatos enigmáticos estruturam o período da viagem em alto mar para Nova Iorque.

Sendo assim, os mesmos questionamentos para os personagens podem ser feitos para a estrutura do roteiro: quais eventos seriam reais e ilusórios? a quais conclusões os espectadores poderiam chegar tentando decifrar o que ocorre? os criadores seriam capazes de explicar cada mistério ou deixariam alguns em aberto decepcionando quem esperava receber todas as respostas? Ao invés de cair na armadilha de pensar que tais perguntas seriam respondidas apenas através de cenas diretamente elucidativas, é importante considerar que a presença de determinados personagens e símbolos mobiliza sentidos e interpretações para cada desenvolvimento da trama. O menino silencioso encontrado preso em um armário do Prometheus e o sujeito chamado Daniel Solace movimentam grande parte dos capítulos, parecendo ser, respectivamente, o catalisador de experiências extrassensoriais e um vilão em busca de algo valioso para seus próprios interesses. Além disso, um besouro tecnológico, os números na porta das cabines dos passageiros e diversos elementos com a ilustração de um triângulo são signos que gradualmente geram curiosidade e possibilitam projeções sobre o que se passa no Kerberos.

É curioso também notar que a apreensão quanto à desconfiança se os criadores conseguiriam explicar todo o quebra-cabeça para a realidade das embarcações leva o público a formular suas próprias teorias. Desse modo, o esforço de dar sentido à produção fez com que se pensasse que a fonte dos mistérios, por exemplo, poderia ser o Triângulo das Bermudas em função da localização espacial da história ou a relação de humanos e divindades segundo a mitologia grega devido aos nomes das duas embarcações. À medida que a temporada se desenvolve, a abordagem temática e os paralelos simbólicos propõe certas referências artísticas e filosóficas, como os filmes “Matrix“, “Solaris“, “Triângulo do medo“, o livro “O despertar” de Kate Chopin e a alegoria do mito da caverna de Platão. Tais diálogos fazem a narrativa trabalhar discussões filosóficas sobre o que é o real, estabelecendo a jornada de Maura em busca de informações sobre o irmão que tentava deter algum plano do pai deles como uma fantasia, uma simulação tecnológica e/ou um contraste entre sonho e pesadelo; e comparações metafóricas entre o cérebro humano e o oceano, ambos sendo desconhecidos em boa parte de sua constituição.

Ao mesmo tempo, as conjecturas sobre o que se vê podem tentar encontrar algum eco em “Dark“. De forma semelhante, a trilha sonora de alguns momentos específicos lembram os tensos acordes e a narrativa cíclica de eventos em repetição de acordo com um padrão (a abertura de cada episódio em que algum personagem entra em contato com uma memória dolorosa e é impulsionado a acordar) acentua o tom de suspense. Porém, algumas diferenças marcam as singularidades de uma série que se fundamenta em torno do mistério produzido pelo que não se consegue rapidamente explicar. A começar pela grandiosidade do design de produção que traz a opressão do mar revolto contra a vulnerabilidade da embarcação e a aparição de novas realidades projetadas pelo desenrolar da trama. Outras marcas particulares são as menções às desigualdades sociais entre a primeira classe dos camarotes e a segunda classe na parte inferior do navio e a evocação alegórica da Torre de Babel por conta de personagens de diferentes nacionalidades com dificuldades de comunicação.

Capítulos após capítulos, “1899” eleva a escala dos acontecimentos e das partes do quebra-cabeça ao passear pela fantasia e pela ficção científica com inúmeras reviravoltas nos arcos de Maura, do pai e do irmão da médica, de Daniel Solace e do menino silencioso. Consequentemente, as angústias que parte dos espectadores poderiam sentir temendo que nem todos os mistérios criados seriam elucidados precisam ser compreendidas sob outras bases. Diferentemente de seu trabalho anterior, Baran bo Odar e Jantje Friese fornecem respostas mais rápidas, embora não tenham a preocupação de esclarecer todo mínimo detalhe porque o quadro geral é o que mais interessa. E, nesse sentido, a série mostra seu potencial em termos narrativos e dramáticos. Para quem estiver interessado pela construção da mitologia daquele universo, o fim da temporada aponta caminhos interessantes para os próximos anos ampliando seu escopo e o senso de desconhecimento. Para quem estiver interessado por outras possibilidades, o mistério do que é real ou ilusório, explicável ou inexplicável e quem é o Criador pode remeter ao agente que elabora o universo diegético, às divindades que criam a existência ou os realizadores que dão vida a um projeto tão ambicioso.

OBS.: No domingo dia 20 de novembro de 2022, a escritora e quadrinista Mary Cagnin acusou Baran bo Odar e Jantje Friese de plagiar sua HQ “Black Silence” para criar a série “1899“. Por se tratar de uma questão que exige atenção, julgamos necessário mencionar o fato. No momento em que esta crítica foi escrita, os desdobramentos do caso ainda não estavam definidos e nenhuma resolução oficial e formal já havia acontecido. O autor do texto não leu a HQ, por isso não se considera apto a se aprofundar na discussão, apenas consciente da importância de não se ignorar a situação.