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“20 DIAS EM MARIUPOL” – Quem é favorecido com essas imagens? [47 MICSP]

Expor a guerra dentro de uma zona de conflito implica exibir imagens fortes, chocantes e revoltantes, razão pela qual é necessário ter estômago para assistir a 20 DIAS EM MARIUPOL. Esse alerta é imperioso, dado o grau extremo do que é apresentado. O que se torna problemático no documentário é a redundância das imagens, um meio para atingir um fim que talvez não seja o único.

Na cidade de Mariupol, um grupo de jornalistas ucranianos acompanha a invasão russa desde o início. Registrando vinte dias da guerra no local, o diretor mostra os rastros de morte de civis e destruição deixados lá. Cada vez mais encurralados e com estrutura precária, os jornalistas encontram dificuldade de enviar o material gravado aos seus editores e não têm como certa sua saída com vida.

(© Dogwoof Sales / Divulgação)

Trata-se do primeiro trabalho de Mstyslav Chernov na direção e, se for possível detectar um traço de sua assinatura, é o teor gráfico de sua obra. Isso não significa que o som é colocado em segundo plano; a trilha musical funciona bem para transmitir as diferentes sensações provocadas pela narrativa, do terror que surpreende a uma mesma nota contínua que atordoa. No drama das mortes, prevalecem as cordas; na ação do deslocamento sob risco, a percussão. Em raciocínio análogo, a câmera na mão se movimenta mais ou menos a depender da estabilidade (ou instabilidade) do local no momento filmado.

O teor gráfico mencionado se refere a características de torture porn que Chernov propositadamente adota. São mostrados pais e mães que, desolados, desesperados e inconsoláveis, derramam mais do que compreensíveis e dolorosas lágrimas pelos destinos que seus filhos receberam ou podem vir a receber. Como se não fosse suficiente, o diretor faz uma espetacularização do sofrimento ao expor também as vítimas infantis, como uma criança que, aos prantos, afirma ter acordado com as bombas caindo e que “só não quer morrer”. Para Chernov, isso não basta, ele vai mais longe e exibe corpos mortos de crianças, bebês e até mesmo – talvez a cena mais perturbadora – uma reanimação malsucedida de um bebê. É verdade que a morte de Ilya (16 anos), Evangelina (4 anos) e Kyril (18 meses) merece ser honrada com um propósito maior, mas talvez as imagens não devessem chegar ao extremo em que chegam para atingir esse propósito.

Em determinado momento, fala-se que aquilo “é doloroso de assistir, mas precisa ser assistido”. O propósito, em tese, seria escancarar para o mundo que soldados russos mataram civis ucranianos. “A câmera não deixa” que o diretor pare, como ele mesmo afirma. Sob o manto do jornalismo, porém, o filme se torna bastante unilateral, falhando no respeito ao contraditório, pilar tanto da atividade jornalística quanto do cinema documental. Isso não significa isenção e imparcialidade completas, nem haveria sentido em esperar isso de um filme sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia cujo diretor é ucraniano. A questão é que, de maneira rasa e possivelmente rasteira (ou como fruto da inexperiência do diretor), o documentário aborda o conflito elencando um vilão como seria feito em uma história infantil, ao passo que a História é que poderá definir melhor as posições dos envolvidos – que, aliás, não se reduzem aos dois países. Note-se que as manifestações oficiais russas surgem várias vezes, as ucranianas, apenas uma. Em determinado momento, o diretor chega a mencionar o sofrimento do povo ucraniano nos últimos anos, com guerras ininterruptas, fazendo o seu filme parecer um objeto de propaganda.

Em termos de ponto de vista, às vezes, o longa é um documentário observativo da perspectiva de civis ucranianos, que depõem que “só querem viver em paz” no seu país ou que as imagens impactantes precisam ser mostradas ao mundo. Às vezes, contudo, Chernov participa não apenas com sua narração voice over, mas interagindo com as pessoas, ora assumindo-se conterrâneo, ora usando terceira pessoa. A subjetividade surge com maior ou menor intensidade: por exemplo, naquela hipótese, ao falar das filhas, nesta, ao opinar sobre o que vê e registra (“os soldados estão tensos e não querem ser filmados”, “não é só a estrutura, é o isolamento”).

Os civis são peões em um tabuleiro maior, assim como também o são os próprios repórteres, que, com boas intenções, podem estar atendendo a interesses muito maiores que os humanitários. A proposta unidirecional (e, portanto, cinematograficamente pobre), além de profundamente limitadora, satisfaz os editores, ávidos por material que impressione (e vende bem), mas também países (terceiros) com interesses próprios no conflito. Quando as autoridades russas afirmam que as imagens são inverídicas, impõe-se refutar para comprovar o óbvio: a guerra é real e as vítimas são reais. Entretanto, é limitador nortear o filme a essa comprovação para o mundo. Desse modo, é importante questionar quem é favorecido com imagens explícitas escandalosas como as dos dias em Mariupol. Não se trata de criar teorias conspiratórias, mas de refletir com complexidade sobre algo complexo. Do contrário, o documentário causa uma indignação rasa e incompatível com as proporções reais dessa guerra.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).