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“3%” [4ª TEMPORADA] – Distopia na utopia

Durante as três primeiras temporadas, 3% projetou como ficaria o planeta após uma acelerada devastação ambiental. Da possibilidade utópica de recomeçar em uma comunidade equilibrada e justa, os resultados distópicos se revelaram: o surgimento de um mundo dividido em Maralto – região paradisíaca onde recursos e tecnologias não faltam, a natureza floresce em sua diversidade e os ricos vivem – e Continente – área onde a miséria é flagrante, recursos e tecnologias faltam e os pobres vivem. Como mais um indicativo das desigualdade, é feito anualmente um Processo, que seleciona 3% dos candidatos com vinte anos a partir de provas para ingressar no Maralto.

(© Netflix / Divulgação)

Até os últimos episódios, as trajetórias de Michele, Joana, Rafael e Marco se encontram compartilhando o esforço para eliminar tantas discrepâncias sociais. Esse ponto em comum os leva a tentar criar uma alternativa ao Maralto e ao Processo: a Concha, um local no meio do deserto que reserva a todos do Continente uma vida baseada na cooperação, na igualdade e na liberdade de se desenvolver independentemente dos maraltenses. Porém, os obstáculos para sustentar e administrar a Concha, além das sabotagens do Maralto feitas por Marcela e André, ampliam os conflitos de modo a sugerir que a convivência pacífica seria inimaginável.

Pedro Aguilera é o criador e showrunner de uma série que se articula na dualidade entre utopia e distopia. Ele é o responsável por uma equipe de criação afinada em traduzir visualmente a oscilação entre a esperança idealizada e o fatalismo desencorajador. Nos momentos em que personagens buscam uma solução coletiva para os problemas ou se engajam na luta pelo bem-estar geral (na origem do Maralto, na formação do grupo revolucionário A Causa ou na criação da Concha), a utopia ganha espaço; nas ocasiões em que dificuldades para a sobrevivência e decisões complexas são necessárias (como relacionar Maralto e Continente, lutar contra injustiças daquela realidade e manter novas possibilidades de vida para os mais pobres), o interesse individual se encaixa em um distopia. Logo, coletivismo e individualismo são contrapontos colocados na obra.

O embate entre os anseios utópicos por uma coletividade harmônica e o egocentrismo distópico voltado para si mesmo também aparece nas jornadas dos protagonistas. Os roteiristas da produção estabelecem percursos dramáticos coerentes com essa dualidade: Marco carrega o peso de vir da família Álvares, que sempre passou no Processo, e de tentar não se importar apenas com pressões familiares; Rafael lida com a contradição de desejar um mundo melhor ao mesmo tempo que almeja ser um salvador por suas próprias ações; Michele encara os desafios de perseguir uma realidade mais igualitária e de encontrar seu papel genuíno nesse projeto; e Joana enfrenta o ceticismo de não conhecer sua história e de não confiar em ninguém para aprender a se importar com algo maior do que si mesma. Tais trajetórias se desenvolvem nem sempre encontrando o equilíbrio entre vontades pessoais e necessidades coletivas.

Como o seriado se estrutura a partir de muitos choques, a narrativa incorpora elementos do subgênero distopia. Imaginar um futuro que poderia ser ideal não fosse o acúmulo de fato desestabilizador; projetar a ansiedade humana frente a medos e preocupações atuais; descrever um futuro pessimista marcado pelo autoritarismo; e extrapolar problemas reais para uma dimensão exacerbada estão presentes. Em especial, os subtextos da obra ressaltam essas características: a divisão de classes entre Maralto e Continente graças às diferenças econômicas e ao falso discurso de justiça pela meritocracia; e o misticismo legitimador das distinções de classe e da igualdade de méritos entre todos, evidenciado pela manipulação da religião pelos poderosos e pela caracterização do Maralto como um paraíso alcançado pelo purgatório do Processo.

Identificar traços da ficção científica não exclui a possibilidade de outros gêneros se combinarem na narrativa. Em tom predominante, está a ficção científica por conta do universo criado dentro do estilo distópico, da trama especulativa sobre um futuro degradado, bem como a inserção de aparatos tecnológicos. Em escala secundária, o gênero ação se faz presente em sequências dinâmicas de confronto entre Maralto e Continente, assim como a atmosfera de conspiração preenche cada nível do conflito central. Na estrutura dos episódios, ainda se pode notar convenções clássicas de uma linguagem hollywoodiana comercial com plot twist e cliffhangers que captam o interesse dos espectadores.

Mesmo que existam aspectos fortemente associados a produções norte-americanas comerciais, a brasilidade da obra não é esquecida. Cada diretor conduz os capítulos com a sensibilidade de ressaltar traços particulares do país e efeitos expressivos da mise en scene, principalmente no design geral de cenários e figurino e na trilha sonora. Ao passo que o Maralto é descrito como uma ilha paradisíaca cercada pela natureza e passível de ser localizada em qualquer costa brasileira, o Continente é caracterizado como uma área periférica marginalizada na qual seus moradores reaproveitam todo tipo de descarte para suas moradias e roupas. Em relação à trilha sonora, violinos improvisados de madeira e tambores de origem africana criam melodias muito próprias, capazes de reinventar ritmos, como o rap, no último episódio, para intensificar os impactos emocionais da conclusão.

Enquanto a última temporada avança, o desenvolvimento dramático em direção a uma guerra se torna mais palpável. Os sete episódios de encerramento da série apontam para tramas, conspirações, alianças, traições e planos feitos por cada um dos lados em disputa para alcançar seus objetivos: o Maralto decidido a manter a estrutura social hierarquizada e o Continente imerso no dilema de apoiar o status quo para ascender socialmente ou lutar pela reformulação do universo diegético. Entretanto, tanto uma guerra quanto a manutenção da pequena parcela de pessoas permitida no Maralto seria permanecer na distopia. Portanto, os protagonistas de “3%” reconhecem que a paz e cooperação dos 100% corresponderiam a uma desejada utopia, através de um final que, mais do que ser um desfecho, é um desejo de esperança.