“FICÇÃO AMERICANA” – Refém do próprio texto
Em tempos de mercantilização da relevância, é difícil averiguar as verdadeiras intenções que motivam discursos inclusivos e de representatividade. O lucro oferecido pela filiação a essas pautas tem se ampliado progressivamente, motivando produtos e peças publicitárias que pouco veiculam a verdadeira importância por detrás desses ideais. Consciente dessa capitalização, FICÇÃO AMERICANA observa o ruído pelas grandes narrativas de representação social, ironizando as intenções por detrás da reprodução massiva e tentando elencar as próprias contradições.
Frustrado com a falta de popularidade com seus livros de ficção, o autor Thelonious Ellison – carinhosamente conhecido como “Monk”- , tenta entender o motivo de seu fracasso. Ele se depara com o novo best seller social de uma grande escritora e passa a questionar como poderia reinventar a própria escrita. Com a chegada de uma prestigiada competição literária, o que se inicia como provocação se torna um possível caminho: a criação de um pseudônimo para escrever um apanhado de “tudo que se espera da literatura negra”.
Diretor de primeira viagem, Cord Jefferson parte dessa expectativa para denunciar um projeto industrial de esteriótipos, guiado pela extração de características aparentes e pela leitura algorítmica de pautas que possam escoar com facilidade. Ele não nega a importância de se expandir tais plataformas de visionamento, mas questiona uma obrigatoriedade aparente de artistas negros em tratar de questões raciais. Surge daí a divertida frustração de Jeffrey Wright, que faz de seu Monk um homem incrédulo, desacreditado com a imposição desses assuntos, e igualmente apaixonado pela ficção como potência essência.
A premissa é cativante, buscando oxigenar a trajetória recente de premiações moduladas – ainda que não inteiramente – por dramas biográficos e com forte subtexto de conscientização. Encontra uma maneira de fazer esse exercício último ainda filiada à comédia de gênero e a extrapolação da realidade, especialmente na forma como o filme sobrepõe as duas identidades paralelas. Nem por isso, todavia, a direção consegue justificar a manifestação do projeto enquanto filme.
Habitando um campo extremamente literário, a produção peca na articulação de códigos audiovisuais, se limitando ao universo textual enquanto traça um manifesto, justamente, sobre as suas limitações. Ainda que a intersecção entre Monk e sua segunda persona seja interessante de se acompanhar, a mesma acaba sintetizada pelo comprometimento de Wright nesse jogo de transposições, mas pouco se traduz na forma como os planos são organizados.
Parece inexistir um projeto de pensamento que salte às páginas – do roteiro e das criações de Thelonious dentro da tela -, inferiorizando um alcance temático que, apesar da argumentação geral, acaba se rendendo aos vícios ali criticados. Essa ausência de tridimensionalidade no manejo das imagens reduz as personagens ao próprio estigma de limitação ao escrito, ao panorama limitado do que é se descrever uma pessoa.
Embora a performance de Sterling K. Brown oxigene o seu personagem, o irmão de Monk acaba ilustrando uma extensão dos estigmas de inferiorização à questão da sexualidade, reduzido a esse papel e sem nenhuma possibilidade de crescimento orgânico. É como se tudo operasse por uma lógica restritiva do roteiro, inviabilizando passagens que confiram um crescimento natural às figuras ou autorizem o aflorar de características mais genuínas e impassíveis de descrição em papel.
Indício disso está na auto referência dos códigos meta linguísticos. A contextualização do filme no âmbito das premiações permeia todas as motivações de estrutura, reforçando tal pressão como objetivo influente em sua reflexão de escárnio sobre o vazio desses objetivos. Acontece que, pensando essa mesma essência ilustrativa, já mencionada, a obra nada mais faz do que costurar alguns eixos de debate, entrelaçando uma série de fragmentos comumente entendidos como “Oscar-bait” – termo usado para um conjunto de características fílmicas, tais como estilos, estruturas ou arquétipos, que se julga escolhido “apenas” para alavancar chances entre os votantes da Academia – e se dizendo inovador pelo seu auto reconhecimento. A hipocrisia desse processo fica bastante clara – não existe ali intenção outra a não ser compilar esses tópicos para justificar seu espaço cultural.
Se a tal contradição, por outro lado, é na realidade a grande sacada – podendo ser abraçado, justamente, por alguns, como um projeto que não evita rir de si mesmo -, fica a critério de cada espectador. Nem por essa incerteza, todavia, a obra se afasta dos comentários charmosos a respeito do atual estado da indústria cinematográfica, brincando com o status de algumas produções hegemônicas e se aproveitando do ótimo timing cômico do seu elenco.
Sendo assim, “Ficção americana” encontra certa força em seu roteiro, ainda que sua autoconsciência tenha data de validade. Não suficiente, existe pouco aqui que justifique a articulação cinematográfica, havendo pouco diálogo entre o texto e as imagens vazias que o constituem. Resta o talento do elenco para arrancar risadas, mesmo que seu impacto seja passageiro.