“O DUBLÊ” – Codependência
Pode parecer estranho e até mesmo paradoxal que, para fazer uma homenagem a uma atividade pouco reconhecida no cinema, O DUBLÊ acabe destacando a atividade mais reconhecida. Porém, a verdade é que há uma relação de codependência entre dublês e estrelas, uns não podem existir sem os outros, e é dessa premissa que o filme parte.
Colt Seavers tem uma vida feliz trabalhando como o dublê do grande astro Tom Ryder, ao lado de Jody Moreno, uma assistente de direção com quem mantém um relacionamento. Depois de um acidente do qual quase não saiu vivo, sua carreira passa por uma pausa, retornando a pedido de Gail, a produtora dos filmes de Tom. O que Gail quer de verdade, porém, é que ele encontre o astro, cujo paradeiro é desconhecido.
Tratando-se de uma homenagem a uma função no cinema, a metalinguagem é inevitável, a começar pelas inúmeras referências. Há menções a artistas (Dwayne Johnson, Tom Cruise), personagens (Jason Bourne, James Bond) e filmes (“Rocky”, “O fugitivo”), com foco no que se filia à ação, sem prejuízo de citações de outros gêneros (“Uma linda mulher”, “Thelma & Louise”). Não há referências, porém, a filmes de super-heróis, o que é proposital: de maneira sutil, o diretor David Leitch critica os filmes que exageram no CGI, valorizando os efeitos práticos, como nos filmes em que se envolveu.
A metalinguagem prossegue no filme que há dentro do filme. “Metalstorm”, dirigido por Jody (Emily Blunt, simpática, mas sem muito brilho) é uma história de amor sci-fi cuja trama é uma repetição rocambolesca do relacionamento entre ela e Colt, o que gera bons diálogos mesclando a realidade diegética com a ficção diegética. O longa de Jody é aproveitado para mostrar o que ocorre no set, isto é, como tudo é filmado (uma queda de grande altura, a diferença do ensaio em relação à estética após o uso de filtro, o spinning shot explorando o espaço, mas também demonstrando o quanto uma diretora é exigida etc.). Aqui, há referência a “Mad Max: estrada da fúria”, mas principalmente a “Duna” (2021), seja pela composição visual árida e de tons pastéis, pelo contexto diegético (amor em outro planeta), ou pela alusão à trilha de Hans Zimmer (como a música “Gom Jabbar”).
Até mesmo o humor do longa é muitas vezes metalinguístico, como no chapéu de Jody, na informação de que dublês não recebem Oscars e na conversa de Colt com Gail (fazendo troça dos roteiros de Hollywood, em que a mensagem é sempre a mesma e “a audiência são cachorros”). Nos dois últimos casos, há um lado crítico à indústria, sem grande ousadia, mas digno de nota. O roteiro de Drew Pearce tem claras limitações, por exemplo, no uso de narração voice over para impulsionar a trama e encerrá-la, como uma “muleta”, além da pieguice que permeia o longa. O romance entre Colt e Judy é bastante piegas (como no sonho de beber margaritas na praia), porém há momentos em que o filme se aproveita dessa característica. É o caso da cena em que toca “All too well”, da cantora Taylor Swift, que é ridícula o suficiente – ora pela atuação excelente de Ryan Gosling, cujo talento cômico é inegável, ora pelos flashbacks cafonas, em subjetividade mental – para ser hilária.
Leitch apresenta uma comédia de ação superficial, mas consciente, com os dois eixos em bom nível. O humor está nas atuações (além de Gosling, Aaron Taylor-Johnson faz de Tom um ótimo “canastrão” da indústria; diversamente, a Gail de Hannah Waddingham é mais séria), mas também nos diálogos (é muito bom aquele em que o casal discute o relacionamento na frente da equipe) e nas situações cômicas (como a que toca a música de Swift). Quanto à ação, pela sua carreira pregressa como dublê, o diretor é bastante hábil ao variar em cenas de perseguição, saltos, uso de armas (inclusive um cachorro), capotamentos, tombos etc. Para além de planos-sequência complexos, Leitch elabora cenas encantadoras, merecendo menção a do caminhão e a da boate: na primeira, a caçamba girando é quase poética, e a montagem paralela, embalada por “Against all odds”, equilibra a adrenalina; na segunda, os efeitos visuais enriquecem um momento que, do contrário, seria demasiado ordinário.
O diretor revela ter domínio de recursos para além da ação, que certamente ultrapassa a qualidade da maioria dos filmes do gênero. Ao usar split screen, por exemplo, mais uma vez há uma interessante metalinguagem em que Colt e Jody estão conectados para além do celular em razão de um espelhamento das suas movimentações. Aqui, a mise en scène pode não impressionar, mas denota uma direção com vontade de ir além do básico. O mesmo ocorre com a trilha musical, em que prevalece o rock (como “I was made for lovin’ you” e “I believe in a thing called love”), sem prejuízo do uso, quando oportuno, de outros gêneros (Taylor Swift para fins cômicos, “All I do is win” para robustecer a personalidade ególatra de Tom) ou mesmo de um uso inusitado do próprio rock (a canção da banda Kiss é direcionada em versões diferentes, em tons distintos, para emoções diversas). O diferencial de Leitch, contudo, vem do seu histórico: ele sabe que um bom dublê é tão importante quanto o star power no gênero ação. De nada adianta exibir os músculos de Gosling ou Taylor-Johnson se a sensação de adrenalina é falsa.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.