“DUNA” (2021) – A grandiloquência e a exploração
Diante das idiossincrasias da versão de David Lynch, de 1984, (clique aqui para ler a nossa crítica), é difícil não compará-la com a versão de DUNA de 2021. O contexto futurista é mantido em seu espírito, inclusive em seu aspecto eventualmente grotesco (no caso do Barão), todavia em medidas distintas. Da mesma forma, a grandiloquência de 2021 é muito maior que a de 1984.
O ano é 10.191 e o Imperador decide que o Duque Leto Atreides deve administrar Arrakis, um planeta desértico onde se encontra uma substância, conhecida como especiaria, com propriedades valiosíssimas. O Duque se desloca com seus soldados, sua concubina, Jessica, e seu filho, Paul, a Arrakis, sabendo, porém, que são inúmeros os perigos a serem enfrentados, como as condições inóspitas do planeta, os Fremen (seus nativos) e os Harkonnen (seus aos antigos colonizadores).
Depois de filmes mais próximos do real, como “Os suspeitos” e “Sicario: terra de ninguém”, o diretor Denis Villeneuve verticalizou sua filmografia no sci-fi com “A chegada”, “Blade Runner 2049” e, agora, “Duna”. Sua visão, contudo, ainda é atrelada à realidade mesmo em uma ficção científica misticista como é o caso do longa baseado na obra literária de Frank Herbert. Sempre que possível, o surreal recebe uma explicação tecnológica quase óbvia: para fazer voos mais perigosos, quiçá mais velozes, as naves têm asas que parecem de mosquitos; ao invés de ler livros, Paul assiste a hologramas de “bibliolivros”; o escudo depende de um aparato ativador, sendo uma proteção fatalmente falível. Há um deslize relativo à medicina (como o dr. Yueh confere sinais vitais apenas encostando seus dedos na cabeça de Paul?), além da natureza inafastavelmente surreal da obra. Nesse segundo caso, a solução é fornecer explicações altamente didáticas, o que pode ser visto com desdém em razão do exagero de didatismo (explicando praticamente tudo que não tem correspondência com a realidade), mas também representa uma facilitação da prolixa mitologia criada por Herbert. Além de neologismos (dagacris, trajestilador), existe um contexto político específico que explica a ideia governante.
Jon Spaihts e Eric Roth escrevem o roteiro com Villeneuve, o que corresponde, metaforicamente, aos altos e baixos do longa. Spaihts escreveu “Prometheus” e “A Múmia” (de 2017), certamente não sendo o melhor do trio. Em seu lado negativo, “Duna” encontra uma mixagem de som incapaz de valorizar a boa edição de som, deixando que a incômoda trilha musical de Hans Zimmer chame para si a atenção. Zimmer pode ser renomado, mas suas composições aqui são barulhentas como as de “Interestelar” (parece que o compositor prevê muito barulho para o futuro da humanidade), são geralmente desagradáveis e pouco harmônicas do ponto de vista musical (poucas ali seriam ouvidas fora do filme como outras músicas quaisquer). De positivo (assim como os roteiros de Roth, como “Forrest Gump: o contador de histórias” e “O curioso caso de Benjamin Button”), porém, está a fotografia de Greig Fraser, que aposta em tons acinzentados na parte anterior à ida dos Atreides a Arrakis e tons de areia após esse momento (o planeta, por sinal, é monocolor). O figurino de Jacqueline West reforça as cores da fotografia, destacando o preto (ou o cinza escuro) nos arenosos cenários do planeta desértico. Para atenuar a pouca variação, Fraser coloca neblina em algumas cenas – como na primeira aparição do Barão (Stellan Skarsgård, magistralmente maquiado), ou na conversa ao ar livre entre Jessica (Rebecca Ferguson, cuja redução da maquiagem à medida que o filme progride combina com seu arco narrativo) – e mostra que o planeta dos Harkonnen, chuvoso e escuro, é o oposto de Arrakis.
No protagonismo está Timothée Chalamet, magistral, como de costume, para criar um herói afetuoso (corre para abraçar o Thufir de Stephen McKinley Henderson) e sonhador (imaginando a si mesmo como um pacificador no papel de imperador), além de poderoso (segundo a própria Reverenda cuja face parcialmente oculta por um véu é a de Charlotte Rampling) e perspicaz. Ao afirmar que o que o povo de Arrakis enxerga é “o que foi dito para verem”, Paul demonstra saber que a lenda que (em tese) o coloca no centro é uma opressão simbólica – afinal, por que aquele povo precisa de um messias? Por que precisa ser um estrangeiro? Trata-se de uma metáfora sobre a colonização de exploração, como aponta Stilgar (Javier Bardem) ao afirmar que os Atreides, assim como os Harkonnen, extraem o que querem do planeta sem oferecer nada em troca. O uso de palavras islâmicas, como Mahdi, assim como o vestuário dos nativos, é a representação da superioridade com que os EUA enxerga e efetivamente age em países islâmicos, de maneira agressiva, praticamente predatória, sob pretexto de uma salvação. Eis a ideia governante do trio do roteiro.
Coerente com o século XXI, comparando-se a versão de 2021 com a de 1984 de “Duna”, há maior representatividade tanto no elenco (por exemplo, papéis relevantes dados a um asiático, Chang Chen, e a uma mulher negra, Sharon Duncan-Brewster, ótima no papel, por sinal) quanto pela postura das personagens – é o caso de Chani (Zendaya), que não se joga fragilmente aos braços de Paul, mas, ao contrário, o chama de “garotinho” e prevê sua morte precoce. No elenco estão ainda Oscar Isaac como o Duque (frio e sem emoção), Josh Brolin como Gurney, o braço direito do Duque (sem muito destaque) e Jason Momoa como Duncan (uma espécie de irmão mais velho de Paul, um herói bravo e carismático como na maioria, se não todos, dos papéis do ator). O elenco estelar combina com a grandiosidade que Villeneuve imprime em seu filme, com uma atmosfera épica do que se pretende um evento cinematográfico. Talvez o longa não alcance o status almejado por seu diretor, como se fosse um clássico imediato, mas é um filme muito bom – e certamente melhor que o de 1984.
Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.