“A FLAUTA MÁGICA” (1975) – Uma divertida tradução
O curioso de qualquer adaptação de uma mídia para outra é que uma obra genial pode se tornar um desastre tanto quanto uma obra desastrosa pode se tornar genial (sem olvidar as nuances entre os extremos, evidentemente). A FLAUTA MÁGICA, de 1975, não alcança o brilhantismo da sua origem, mas que tampouco a deprecia. Enquanto a ópera consolidou a carreira de um extraordinário compositor, o filme é a demonstração de uma pouco conhecida versatilidade de um também extraordinário cineasta.
Depois do sequestro de sua filha Pamina pelo bruxo Sarastro, a Rainha da Noite pede ao príncipe Tamino que a resgate, oferecendo a mão da moça como prêmio. Para essa tarefa, ela lhe oferece uma flauta com poderes sobrenaturais, convocando ainda o jovem tocador de flauta Papageno para ajudá-lo na empreitada.

A concepção da ópera “A flauta mágica” é de responsabilidade de Wolfgang Amadeus Mozart, com libreto de Emanuel Schikaneder, tendo estreado em 1791. Essas informações são importantes para compreender o seu subtexto; do contrário, ela pareceria uma espécie de conto de fadas à la Disney. Um primeiro dado que merece destaque é o fato de que ambos eram membros da maçonaria, cujos valores se irradiam na ópera. Não é à toa, assim, que Tamino assuma a tarefa do resgate junto de Papageno, com quem desenvolve uma amizade, na medida em que a fraternidade é um dos pilares da maçonaria.
Também o momento em que Mozart e Schikaneder viveram é relevante. A história que desenvolveram não lhes é contemporânea, dando indícios de se tratar de uma era medieval, dado o cenário fantástico, como a presença de um dragão (o que geralmente se associa ao Medievo), e a organização política, leia-se, monárquica (idem). Curiosamente, costuma-se datar a origem da maçonaria no fim do século XV; o motivo pelo qual escolheram essa época, entretanto, é justamente porque viviam no momento em que borbulhavam o Iluminismo e a Revolução Francesa, uma antítese da Idade Média. Com o primeiro, veio a supremacia da razão e da ciência (em detrimento da fantasia); com a segunda, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade.
Em outras palavras, a escolha do Medievo se deve ao objetivo de fazer troça do pensamento medieval e valorizar o pensamento que historicamente lhe sucedeu. Na prática, isso significa que os componentes fantásticos da obra, quando não têm um tom jocoso, são frontalmente atacados. No fundo, “A flauta mágica” é uma comédia cuja ideia governante é que as pessoas não devem ceder à tentação de acreditar em superstições, uma vez que a razão é libertadora. É por isso que a Tamino é imposto o desafio de buscar a verdade, algo reiterado várias vezes. Note-se ainda que as relações de poder que são respeitadas não são aquelas baseadas no medo (da Rainha da Noite), mas baseadas na sabedoria do soberano (de Sarastro).
Quando se faz um cotejo deste filme com outros da filmografia de Ingmar Bergman, existem diferenças de tom que revelam ser ela deveras eclética. “A flauta mágica” é quase uma quimera que mistura comédia, fantasia, romance e musical do ponto de vista de gênero, e cinema e teatro do ponto de vista da mise en scène. O cineasta ficou famoso por dramas (geralmente psicológicos) que questionam a fé e abordam, através de reflexões existenciais, a condição humana – tais como “Morangos silvestres”, “O sétimo selo”, “Quando duas mulheres pecam”, “Cenas de um casamento sueco” e “Fanny e Alexander”, dentre outros -, o que não é o viés do longa de 1975, muito mais leve, quiçá despretensioso. Nesse sentido, as atuações são exageradas (o que é típico do teatro), algumas vezes caricatas (caso de Håkan Hagegård como Papageno, a personagem mais cômica), e os cenários são artificiais como os de um teatro.
Para produzir o filme, Bergman construiu uma réplica de um teatro real, cuja tecnologia permitia criar relâmpagos, trovões, fumaça, neve e mudança de fundo através de, por exemplo, cortinas. Muito embora o que prevaleça seja a encenação do palco, o diretor quer transparecer para o espectador que está filmando uma peça que está sendo assistida por um público próprio, razão pela qual reserva alguns minutos apenas para mostrar os rostos da plateia (aliás, uma plateia bastante diversificada quanto a gênero, idade e etnia, o que denota a intenção de dialogar com públicos variados) e pela qual filma os bastidores da peça no intervalo entre os dois atos (o que é cômico per se). Por outro lado, Bergman emprega recursos tipicamente cinematográficos, afastando-se do teatral, por exemplo no uso reiterado de closes (marca da sua filmografia) e na montagem pouco sutil. Os cortes direcionam o espectador de uma maneira que o teatro não faz, inclusive, de modo sagaz, ocorrendo no mesmo ritmo das incomparáveis composições de Mozart. Não se trata, portanto, de mero teatro filmado.
“A flauta mágica” de Bergman não alcança o nível daquela pensada por Mozart, tampouco de alguns dos outros filmes do próprio diretor. Seu objetivo, entretanto, é atingido ao apresentar uma obra divertida que consiga traduzir a linguagem da ópera para a da sétima arte. O elenco, em especial cantando – Josef Köstlinger como Tamino, Irma Urrila como Pamina, Ulrik Cold como Sarastro e principalmente Birgit Nordin como a Rainha da Noite, responsável por uma das árias mais poderosas da História (“Der Hölle Rache”) -, executa com maestria o lado operístico. Quanto à parte cinematográfica, não é à toa que Bergman se consagrou como um dos maiores diretores da História – e o filme de 1975 apenas ratifica tal status.


Desde criança, era fascinado pela sétima arte e sonhava em ser escritor. Demorou, mas descobriu a possibilidade de unir o fascínio ao sonho.