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“A BALEIA” – O olhar piedoso enxerga o bem

Um assunto muito evidente em A BALEIA é o preconceito, principalmente a gordofobia. Interpretar o filme por este prisma, porém, é reducionista, uma vez que ele é bem mais amplo do que isso. Assim como sua inspiração literária, “Moby Dick”, o longa trata de obsessões, da essência humana ambígua e de como tudo isso pode ser lido a partir (ou a despeito) das consequências das escolhas individuais.

Charlie é um professor universitário que dá aulas virtuais porque nunca sai de casa. Seu grau de obesidade sugere que ele provavelmente não viverá muitos anos, razão pela qual, antes de morrer, ele tenta reatar os laços com sua filha adolescente, que deixou aos cuidados da mãe desde os oito anos.

(© California Filmes / Divulgação)

A experiência de “A baleia” não seria a mesma se não fosse o desempenho estupendo de Brendan Fraser no papel do protagonista. Cercado de maquiagem e próteses convincentes e impressionantes, o ator tem no corpulento Charlie um turbilhão de memórias e sentimentos avassaladores, o que é traduzido fisicamente por notórios esforços de movimentação (mobilidade lenta e dores corporais resultantes das atividades mais singelas, como rir) e pelo voraz ímpeto de engolir (quase sem mastigar) os alimentos (que constituem uma distração das emoções ruins). Charlie se envergonha do estado a que chegou, mas nem por isso busca a salvação – seja ela mundana (não vai a hospitais), seja divina (recusa a oferta espiritual de Thomas). Mesmo envergonhado, ele consegue eventualmente fazer piada sobre si (como ao brincar que uma faca não alcançaria seus órgãos), uma máscara que retira quando abre a gaveta e devora o que está ao alcance logo após entender que a morte é iminente.

Igual ao capitão Ahab da obra de Melville (não à toa, também um homem grande e não religioso), obcecado pela cachalote branca, a obsessão de Charlie se torna a sua filha, Ellie (Sadie Sink). O que Ahab quer é se vingar pela perda de um membro; a diferença em relação a Charlie é que a vingança é sobre si mesmo, ou, mais precisamente, seu desejo é fazer uma boa ação antes de morrer. A religiosidade (presente tanto em “Moby Dick” quanto em “A baleia”) é trabalhada pelo roteirista Samuel D. Hunter (autor da peça que originou o longa) de um ponto de vista cético, já que a única personagem de fé é Thomas (Ty Simpkins), e ainda ácido, com uma crítica às religiões. Não há surpresa, dado que a filmografia do diretor Darren Aronofsky é bastante marcada por este viés. De maneira similar ao que já foi visto em outras de suas obras, o cineasta critica a homofobia resultante de atos individuais ou coletivos justificados por crenças religiosas, adicionando um ingrediente sarcástico ao mencionar algumas vezes que muitas pessoas de fé se consideram superiores às demais pelo simples fato de crerem. Paradoxalmente, a redução do assunto a Thomas e seu subplot prejudica o filme, pois é menos cativante que o plot principal.

A grandiosidade de Charlie não cede espaço para Ellie e Thomas, coadjuvantes que, a bem da verdade, pouco colaboram para o resultado (tanto pelo desnível da atuação quanto pela inferioridade das próprias personagens). Por outro lado, Hong Chau representa Liz com um maternalismo capaz de transitar entre a candura do desvio de um objeto do trabalho para o bem de seu amigo e o autoritarismo da expulsão de Thomas à revelia de Charlie. Chau é encantadora nos diálogos com Charlie, mas também muito tocante sem ele (o monólogo sobre Alan é excelente). As personagens coadjuvantes acabam então engrandecendo o protagonista ao estabelecer com ele dualidades: se ele é indiferente à própria condição, Liz é preocupada; se Ellie é hostil com tudo e com todos (uma rebeldia adolescente que, no texto, não se limita ao clichê), Charlie encarna a doçura; se Mary é cínica, o herói abraça o otimismo.

Aronofsky tem em “A baleia” provavelmente o seu trabalho mais tímido em termos de linguagem cinematográfica, o que não significa que é ruim. Por exemplo, os cenários poderiam diversificar minimamente, mas a razão de aspecto reduzida ajuda a ampliar o espaço de Charlie na tela. As músicas de suspense não combinam com a proposta, mas os ruídos da edição de som (vento, trovão, chuva etc.) criam uma atmosfera de maresia, aproximando a obra ao romance de Melville. Da mesma forma, o design de produção traz signos que levam ao universo de Ahab, sobretudo pelas cores do apartamento de Charlie (paredes e cortinas azuis e esverdeadas como o mar, mobília em tons pastéis e castanhos como o casco de um navio), acompanhadas pelo figurino da película.

É com essa lógica que o longa estabelece paralelos textuais inteligentes com “Moby Dick”: os detalhes tentam ofuscar o que é principal; nem todos sucumbem ao confronto; o sofrimento do protagonista é o caminho inafastável para a libertação; a falibilidade humana, uma vez aceita, é igualmente libertadora. Mais indulgente do que de costume, Aronofsky não é, contudo, tão ambíguo quanto Melville: a piedade de seu herói faz com que ele enxergue a bondade mesmo naquele que parece agir norteado pela maldade. E esta não deixa de ser uma escolha individual com consequências, talvez, compatíveis com o que dela se pode esperar.