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“A CAMINHO DA LUA” – Encontro de mitologias

Quando se diz que a animação é uma técnica e não um gênero, a questão em jogo é reconhecer que muitos estilos podem convergir na narrativa. É o caso de A CAMINHO DA LUA. produção que combina comédia, drama, musical e aventura para dar vazão ao caráter imaginativo da história. Esse efeito pode ser alcançado através das múltiplas facetas de uma abordagem mitológica para os diferentes segmentos, apesar de nem sempre seguirem uma unidade coerente.

(© Netflix / Divulgação)

A imaginação reveste desde a infância a vida de Fei Fei, que tem uma relação especial com a mãe. Ma Ma ensinou que uma deusa mística habita a Lua e tenta reencontrar seu amado que ainda estaria na Terra. Após perder a mãe, a menina constrói uma engenhosa nave espacial em direção ao astro para provar ao pai que a história seria verdadeira. Chegando ao seu destino, ela descobre criaturas fantásticas que também participarão de sua missão.

Guardadas as devidas proporções, o filme remete a “Up – Altas aventuras” ao emocionar desde o princípio com a perda de um ente querido. Porém, antes disso, a dinâmica entre mãe e filha fornece duas versões de um mito, considerando-se que ele é uma narrativa simbólica dotada de crenças e tradições de alguma coletividade: uma cosmologia fantasiosa que explica a origem de fenômenos astronômicos e cósmicos a partir do romance frustrado da deusa Chang’e; e uma cultura particular da família no modo de preparar bolinhos para o Festival da Lua, segundo uma antiga receita familiar. Como parte dos costumes daquela região na China ou daquela família em especial, os diretores Glenn Keane e John Kahrs criam sequências musicais que se afastam de qualquer eventual realismo e concretizam esteticamente a dimensão fantástica desses elementos subjetivos.

Com o passar do tempo, fica visível que o desenvolvimento dramático também acompanha uma representação não científica nem racional. A protagonista vê suas crenças serem questionadas, quando suas tias menosprezam a veracidade de Chang’e e seu pai começa a se relacionar com outra mulher, que já tem o próprio filho e dá palpites na receita do bolinho. Em resposta ao racionalismo que a contesta, a jovem insiste em seus valores mitológicos e tenta restaurar uma ordem segura para si mesma: interpreta sua situação familiar em analogia com a trajetória da deusa e busca uma forma de chegar à Lua dentro de métodos supostamente científicos. Nesse sentido, a encenação mantém um tom de fantasia ao sugerir a presença transformada da mãe (mesmo após a morte) próxima da filha e decupar as etapas da construção da nave através de uma série de efeitos animados cartunescos.

Esse aspecto fantasioso vai além dos acontecimentos da trama e recobre os personagens e os cenários. Todas as figuras humanas e animais possuem traços cartunescos que ressaltam constantemente a concepção mítica do projeto, por dispensar o realismo das formas como a Disney/Pixar costuma fazer e investir em uma caracterização mais lúdica. Tal escolha se sustenta muito na composição dos animais (a coelha e o sapo da Terra são tão expressivos quanto os humanos e as espécies da Lua têm um brilho, uma cor ou uma estrutura fora da lógica racional; porém, nem tanto nos seres humanos, já que alguns parentes da protagonista causam certo estranhamento decido ao reforço dos efeitos da animação. Dentro da mesma perspectiva, as locações próximas à casa da jovem apresentam uma atmosfera milenar (por exemplo, a ponte e o lago) e os ambientes na Lua se adequam às representações convencionais do astro e também materializam um universo fantástico de cores, formas, movimentos e texturas fluidos e imaginativos (como os “bolinhos” de Lua antropomorfizados).

O destino de Fei Fei, entretanto, não reserva apenas a concretização de mitos e crenças simbólicas. A descoberta de Chang’e contraria as expectativas idealizadas da adolescente e demonstra como a deusa e o mundo habitado por ela não são prefeitos nem idílicos, criando uma reviravolta que compromete os personagens e a abordagem geral da obra. A divindade é apresentada como uma figura egocêntrica e agressiva que se deleita com a ovação de fãs e impõe seus objetivos de modo intransigente – ela impulsiona uma aventura baseada em uma conveniência dramática (encontrar um objeto tornado misterioso por simples facilitação do roteiro) que mais parece uma competição egoísta do que uma missão compatível com o tom da narrativa. Por mais que o conflito de Chang’e se assemelhe ao de Elsa de “Frozen“, sua caracterização enfraquece a motivação amorosa que a move e a aventura que desencadeia reduz a inocência das histórias míticas e estabelece um cinismo nada bem-vindo ao que o filme fazia até aquele momento.

Sob outro ângulo, o segundo e o terceiro atos criam muitos elementos para lidar enquanto associam a jornada da protagonista às subtramas míticas. Existem vários alívios cômicos ou sidekicks orbitando ao redor de Fei Fei que, embora tenham uma identidade visual própria e uma personalidade marcante, não possuem um período tão coeso com ela. Inicialmente, o irmão dela e seu sapo seriam os companheiros de missão junto com a coelhinha dela, mas os personagens logo são direcionados para outro ponto da aventura; em seguida, a jovem encontra um cão verde e translúcido que possuía um passado em comum com a deusa, convivendo com ele na metade final da narrativa com uma dinâmica de transformação emocional. Ao fim e ao cabo, esses coadjuvantes ficam limitados a um trecho pequeno da produção ao lado da protagonista, o que torna a evolução dramática da adolescente dependente apenas do clímax narrativo.

Apesar de o desenvolvimento do arco de Fei Fei não ser construído gradualmente até seu ápice, é interessante notar como a resolução é mais intimista do que acelerada por conta da conclusão dos desafios da aventura. A menina e a deusa enfrentam suas dores pessoais e aprendem a lição de que as perdas não precisam, necessariamente, paralisar, pois podem também levar a reconstruções da vida. “A caminho da Lua” pode até se desviar do sentimento inicial quando a ação passa a ocorrer no astro, no entanto o conceito original se mantém vivo e retorna no encerramento sem melodramas incontroláveis. Dessa maneira, as sequências musicais, os traços lúdicos dos personagens e dos cenários e a abordagem consolidam a força dos mitos e da imaginação para dar sentido e explicação para a vida.