Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“A CHAMADA” – Liam Neeson salva, mas talvez não se salve

Quando se descobre que Jaume Collet-Serra é um dos produtores de A CHAMADA, tudo faz sentido: depois de dirigir Liam Neeson em nada menos que quatro filmes com propostas similares – “Desconhecido” (2011), “Sem escalas” (2014), “Noite sem fim” (2015) e “O passageiro” (2018) -, a parceria continua. Neeson já interpretou criminosos e homens comuns, mas acaba sendo sempre o herói. É ele, porém, o fator que impede que filmes fracos se tornem péssimos.

É mais um dia comum para Matt Turner. Mesmo enquanto leva seus filhos para a escola, ele não larga o celular, tratando com clientes do seu trabalho no mercado de investimentos. Repentinamente, um celular desconhecido toca dentro do carro. É uma ligação anônima de uma pessoa informando que há uma bomba embaixo do seu assento. Se alguém sair do carro ou se Matt não fizer o que a pessoa quer, a bomba explodirá.

(© Paris Filmes / Divulgação)

Similar (mas muito inferior) a “Por um fio” (2002), o filme é um remake do espanhol “O desconhecido” (2015), reforçando sua falta de originalidade. Aqui, porém, há um problema de concepção que dificulta a suspensão da descrença: é fácil perceber que o misterioso vilão não fará nada até conseguir o que quer; se o fizer, não conseguirá o objeto de seu desejo, seja lá o que for. Não se desconsidera que o roteiro de Christopher Salmanpour cria uma cena específica para demonstrar que a ameaça é real (um clichê dos filmes de ameaça), nem que faça sentido que o protagonista, dada a situação extrema, demore para perceber que o antagonista depende dele para obter algo. O que se torna problemática é a previsão de que nada extremo vai acontecer, do contrário, mais uma vez, o vilão não consegue nada. Com um script mais ousado, ele faria um mal irreversível, motivando Matt a agir contra ele. Essa ousadia, contudo, inexiste.

A verdade é o oposto; com apenas cerca de uma hora e meia de filme (felizmente, não ocorre um elastecimento desnecessário da trama), a narrativa é, para dizer o mínimo, modesta, com episódios dentro do longa (o motoqueiro misterioso, a ligação para a esposa, o homem de terno azul…) que pouco representam uma progressão reveladora. Em outras palavras, o desenvolvimento é pretexto para um thriller vazio, que, no seu conteúdo, poderia ser reduzido aos quinze minutos iniciais e finais sem prejuízo substancial. Nos noventa minutos, fala-se vagamente no capitalismo ao subentender seus defeitos, o que poderia ser explorado a partir da profissão de Matt, mas isso não é importante. O tema poderia ser o foco de atenção distorcido, já que o herói é mais dedicado ao trabalho do que à família – uma fala do vilão (“pense nesse dia como uma profunda experiência de vida”) poderia corroborar tal interpretação -, mas seu arco dramático não percorre essa direção. Existe ainda um flerte com os perigos da vida virtual (a salvação, ainda que temporária, está no sinal cortado do celular, a dark web é mencionada etc.), porém afirmar que qualquer desses elementos conduz o texto seria exagero.

Tampouco se pode afirmar que a direção de Nimród Antal conduz (bem) a produção. É adequadamente trabalhada a preponderância de planos fechados (dentro do carro), abrindo apenas quando justificado (interações externas). Além disso, existem cenas esparsas que podem gerar algum interesse. É o caso da abordagem de Angela, que quebra o ritmo acelerado em um bom sentido (funciona como um respiro, de seu caminhar em direção ao carro ao empréstimo do rádio comunicador). Porém, o diretor é pouco criativo e pouco habilidoso para criar tensão efetiva com recursos imagéticos ou sonoros. Enquanto thriller, “Celular – um grito de socorro” (2004), com proposta semelhante, é bem melhor.

Resta a Liam Neeson salvar o dia (agora em um papel mais verossímil por não exigir dele a mesma fisicalidade de outros recentes). Pouco se sabe sobre Matt: quando seus atos não são ocos (não há razão para a cena com o saco de pancadas, além de mostrar, pela vista, sua condição financeira, o que poderia ser feito melhor), sua moral é estranhamente dúbia. É natural partir da premissa que o protagonista é o epítome da retidão em se tratando de Neeson, mas um olhar atento percebe que isso não fica claro, obscuridade que não é positiva porque obsta qualquer empatia. Se ele não tira os olhos do tablet enquanto fala com a esposa e rejeita assistir ao jogo da filha, pode ser que Zach (Jack Champion) tenha razão e ele seja simplesmente um mentiroso. Todas essas falhas acabam sendo parcialmente compensadas pela atuação de Neeson, que flui do desespero contido para a racionalidade imperativa. Com outro ator, “A chamada” seria muito ruim. Portanto, ele salva o longa. Resta saber se vai salvar a própria carreira da ameaça aparentemente representada por Collet-Serra, com produções repetitivas e nada desafiadoras para um ator do gabarito de Neeson.