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“A DESORDEM QUE FICOU” – Mistério desafinado

Desenvolver uma boa história de suspense é como criar e fazer progredir uma canção. Em ambas, são necessários ritmo, melodia e harmonia para reproduzir distintos elementos simultaneamente, dar sentido ao que foi produzido e manipular reações do público. A nova minissérie original Netflix, A DESORDEM QUE FICOU, até apresenta inicialmente alguma harmonia em sua narrativa, mas a progressão do mistério não sustenta o ritmo nem a melodia de suas pistas e revelações.

(© Netflix / Divulgação)

As primeiras notas ficam por conta de Raquel, uma professora de literatura que aceita uma vaga de substituta na cidade natal de seu marido, Germán. Determinada a salvar seu casamento e a ser a melhor profissional possível, começa a ministrar suas aulas sem saber o que ocorrera à sua antecessora. Então, o entusiasmo desaparece quando passa a receber ameaças de algum aluno e se vê mergulhada em uma espiral de mentiras e intrigas, que colocam sua vida em risco.

Mesmo que o roteiro não dê conta do potencial dos conflitos dramáticos, os acordes em torno das professoras Raquel e Viruca criam uma atmosfera misteriosa cativante. A primeira precisa lidar com seus dilemas pessoais, enquanto embarca em uma rede de segredos da cidade e do colégio para desvendar o que realmente teria acontecido a Viruca para levá-la a um destino trágico; já a segunda, em uma linha narrativa passada, desenvolve relações muito incomuns com os alunos e age de forma perigosa para impedir o despejo dos pais, demonstrando sua natureza manipuladora. Transitar entre os dois núcleos permite à obra construir abordagens diferentes de suspense: as reviravoltas geradas pelas atitudes de Viruca e a investigação de Raquel para proteger a própria vida – ambas com uma forte carga de tragédia iminente.

Os conflitos não atingem todo o potencial possível porque o texto não trabalha explicitamente as posturas questionáveis das professoras diante dos estudantes (Viruca constrói uma intimidade que ultrapassa os limites da profissão e Raquel apresenta um comportamento confrontador mais prejudicial do que favorável a ela para obter respeito da turma). Apesar disso, o criador e diretor Carlos Montero estabelece um paralelismo entre as duas mulheres, seguido pelos demais diretores: suas linhas narrativas são separadas por três semanas, porém elas parecem seguir os mesmos passos uma da outra. A montagem faz essa alternância cronológica para mostrar os riscos corridos, os problemas matrimoniais, as doenças de suas mães e os atritos com os estudantes Iago, Roi e Nerea. A narrativa, inclusive, cria paralelos entre suas ações, intercalando, por exemplo, planos em que se olham no espelho ou fazem ligações.

Se as primeiras melodias funcionam, o mesmo não acontece com outros atributos. O desenvolvimento do suspense perde ritmo por volta do quinto episódio, quando certas escolhas formais enfraquecem a organização narrativa ou o impacto dramático. Isso acontece nos momentos em que a montagem de distintas temporalidades se torna apenas ilustrativa (um flashback serve simplesmente para comprovar algo do tempo presente), bem como nas sequências em que Roi quebra a quarta parede durante a escrita de um texto por conta de uma fotografia cafona (a iluminação coloca raios de sol ao redor do rapaz). Além disso, a condução do mistério também perde foco constantemente por abordar subtramas e personagens coadjuvantes pouco atrativos – é assim que o espectador pouco se envolve com as dificuldades financeiras de Viruca e Germán e com todas as figuras dentro desses segmentos.

Esse excesso de subtramas encontra seu ápice negativo no sexto capítulo, símbolo do caos narrativo que toma conta da minissérie próximo do fim. As transições de cenas e temporalidades se sentem na obrigação de lançar todos os conflitos em pouco tempo (até alguns diálogos ficam desorientados tendo que, em breves minutos, mencionar assuntos variados e desconexos). Consequentemente, os problemas de ritmo ajudam a evidenciar as incoerências dramáticas de uma melodia carente de sentido, como reviravoltas em torno de Germán que pouco afetam nossa experiência; as justificativas forçadas para explicar as razões que levaram Raquel a ser chantageada; e o pouco valor das subtramas para os arcos das professoras. Nada mais sintomático dessas fragilidades do que as respostas para alguns mistérios serem despejadas bruscamente sem preparação, como se os realizadores se livrassem deles.

Por tornar somente as primeiras notas expressivas, faltam também ritmo e harmonia para a evolução dos personagens, embora o elenco se esforce com um material sem coesão. Isabel Garrido tem poucas oportunidades para dar nuances à feminista Nerea e Roque Ruiz vê o conflito de Roi se sentir atraído pelo melhor amigo se esgotar precocemente. Já em relação aos atores principais, a dificuldade é similar: como trabalhar um personagem que o roteiro não sabe para onde levá-lo até o desfecho? Inma Cuesta define a obsessão de Raquel por descobrir os segredos da cidade com empenho, apesar de o arco envolvendo sua mãe ser pouco expressivo; Bárbara Lennie compõe Viruca como alguém capaz de atitudes ousadas para conseguir o que precisa, ainda que a personagem se perca em repetições; e Arón Piper mostra versatilidade ao criar Iago como um personagem muito diferente do Ander de “Elite“, apesar de os dramas contidos no jovem que se faz de bad boy aparecerem mais em sua atuação do que no crescimento de seu arco narrativo.

Não deixa de ser irônico, portanto, que “A desordem que ficou” incorpore em si mesma sua abordagem temática. Os mistérios se estruturam a partir das contradições entre amor e ódio, que afetam as relações dos personagens e geram segredos e revelações. Essa perspectiva influencia negativamente a minissérie a ser uma narrativa de altos e baixos, que começa preparando um suspense que prende a atenção, avança para um desenvolvimento caótico e se encerra com respostas fortes e dramáticas, especialmente em torno de Viruca e Iago. São essas oscilações que reduzem o efeito impactante pretendido, tal como uma canção desafinada que não equilibrou melodia, ritmo e harmonia.