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“A ESTRELA CADENTE” – Desencanto encantado

Existe um primor especial na capacidade de se falar sobre as durezas da vida com alguma leveza. Não que caiba à arte diminuir determinadas mazelas, mas pelo contrário. Com todo o seu artesanato, o cinema se permite à dicotomia entre a realidade crua e o imaginário, e A ESTRELA CADENTE aterrissa com uma compreensão da própria plasticidade como poucos o têm feito recentemente.

A descoberta de sua identidade coloca a vida do aposentado ativista político, Boris, em grande risco. Temendo pela própria vida, ele busca uma forma de abandonar o bar onde trabalha, o “Estrela Cadente”. Quando o homem e seus ajudantes se deparam com o seu duplo, o solitário e sem propósito Dom, em quem encontram uma possível saída. Tudo se dificulta quando a detetive Fiona, a ex-esposa do substituto improvável, decide investigar o seu sumiço.

Reconhecidos por uma longa trajetória no teatro de humor físico, é interessante observar como Dominique Abel e Fiona Gordon exploram essa dimensão corpórea para além de uma comicidade espontânea. Dividindo a direção do projeto, conforme já fizeram em diversos longas e curtas-metragem, têm a sua atenção voltada aos mínimos detalhes do plano, compensando os diálogos pouco numerosos na forma como as personagens preenchem e se deslocam pelo espaço retratado.

(©️ Pandora Filmes / Divulgação)

Existe magia no modo como o elenco, oxigenado pela presença dos próprios diretores – o primeiro na pele do ativista e seu duplo, a segunda como investigadora perturbada pelo sumiço de seu antigo amor -, se impõe sobre as molduras propostas pela câmera. Seja no uso das linhas horizontais desenhadas pela divisória entre o asfalto e o mar, na abertura, pela separação entre as cabines sanitárias do bar título, ou pelos movimentos precisos, que nunca denunciam elementos cênicos ainda aguardando para serem revelados, tudo se volta para esse espaço fílmico.

Não que exista credibilidade nesse universo proposto. Lembrando os tons do cinema de Aki Kaurismali, por exemplo, ou mesmo a frieza das expressões usadas pelo cineasta finlândes, tudo aponta para uma artificialidade assumida. A sucessão de acontecimentos absurdistas transgride o realismo, e a fantasia é fortalecida pela forma como a narrativa costura as personagens entre suas idas e vindas.

O filme reforça as próprias arestas cinematográficas, para os códigos que firmam parcerias entre o espectador e o novo universo, com suas próprias leis de sensibilidade, ali proposto, partindo de uma gama de criações não particularmente nova – a troca de identidade entre corpos idênticos, o signo estrelar transmutado em imóvel decadente -, mas aqui utilizada para evocar relações antigas em meio a um tempo desencantado.

Relações traçadas não apenas entre aquelas presenças, mas também entre as imagens e aqueles que as testemunham. Na maneira como resgata a ingenuidade das performances de Charlie Chaplin – ingênuo apenas em suas personagens, nem por isso menos genial enquanto artista -, propõe justamente um jogo com as falências daqueles signos mais imaginativos, que sugerem um descompasso com o contexto em que precisam existir.

Do girassol “gigante” que começa a definhar em um cemitério, ao simulacro de corpos que se desnaturalizam em sua reprodução – os homens que rumam sem propósito, cedendo a movimentos automáticos, inertes, ao trocar de identidade -, tudo atenta para a representação desse desencanto através da disrupção dessa imagem, buscando uma aura, uma atmosfera maior escondida por detrás dos contornos expostos.

Ao invés de o fazê-lo pela lógica da condenação plástica, entretanto, o destaque de “A estrela cadente” se revela exatamente em seu oposto: a valorização desse apelo último, por mais passageiro e frívolo o possa ser. Surge esse lugar do desaparecimento, de um intervalo entre a existência imediata, física, e um campo espiritual, que atravessa todos esses espectros confusos, vagando por um universo de possibilidades.

Temos assim a comédia física, percebida por muitos como uma realização simplória, de menor complexidade, veiculada a uma compreensão apurada desse uso do corpo. O corpo enquanto extensão de um estado de alma, por mais plástica, saturada e impessoal possa parecer a sua presença. Figuras que, em seus encontros e desencontros, tentam exteriorizar aquilo que pulsa dentro de si. A queda de uma estrela, pulsante, brilhante, prestes a se chocar contra o chão. Mas antes disso, dona de uma magnética e desvincilhadora trajetória.