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“A EXCÊNTRICA FAMÍLIA DE GASPARD” [FVCF/2018] – Comédia do bizarro

Afirmar que A EXCÊNTRICA FAMÍLIA DE GASPARD é uma comédia do bizarro provavelmente é um eufemismo. Não é uma comédia engraçada – embora possa arrancar alguns risos frouxos -, é uma comédia ancorada no esdrúxulo, o que indica o nome brasileiro. Diversamente, o nome original é “Gaspard va au mariage” – em tradução livre, “Gaspard vai ao casamento” -, o que resume a trama: depois de muito tempo distante de sua família, o jovem retorna ao lar para o casamento de seu pai. No caminho, ele acidentalmente conhece Laura, convidando-a para lhe fazer companhia na festa como sua namorada, pois não gostaria de ir sozinho. Em troca de dinheiro, ela aceita, sem saber que os familiares de Gaspard são pessoas extremamente atípicas.

Aceite ou esqueça: Laura está em uma situação esquisita quando encontra Gaspard, mas aceita o convite dele, uma pessoa que acabou de conhecer, para fingir ser sua namorada para a família que ainda vai conhecer. O roteiro, escrito por Antony Cordier (com a colaboração de Julie Peyr e Nathalie Najem), é do tipo ame-o ou deixe-o: sem abraçar o ponto de partida da narrativa, não é possível extrair uma película minimamente aprazível. O texto se furta de fornecer diversas explicações – como um esclarecimento decente do contexto em que a dupla principal se encontra, e o motivo por que Gaspard fica afastado dos familiares -, pois não há grande preocupação em criar algo verossímil ou cem por cento coerente. Reflexo disso é a personalidade das personagens, que, no geral, é rasa. A protagonista Laura não é exceção: quem é ela e de onde veio? Nada disso faz diferença, o que importa é que ela está lá.

Por outro lado, o elenco é bastante competente no que lhe cabe, a começar por Félix Moati, bastante carismático como Gaspard – embora pouco se saiba sobre ele. O script é desleal com o público ao insistir em uma característica dele, para usar essa característica apenas como catapulta para uma cena importante entre ele e Laura. Laetitia Dosch também convence como a perdida Laura, ainda que a excentricidade também lhe tenha aplicabilidade. Gaspard tem dois irmãos, porém o tratamento é muito díspar: enquanto Virgil (Guillaume Gouix) tem personalidade encolhida, Coline (Christa Théret) é a única bem explorada.

Théret é ótima interpretando a surreal Coline, uma garota com clara Síndrome de Peter Pan: em razão de um evento traumático na infância, ela passou a agir como se fosse uma ursa, inclusive usando um casaco de pele de ursa o tempo todo. Com isso, ela cheira as pessoas que acaba de conhecer, come raízes na floresta e se locomove eventualmente com mãos e joelhos no chão. É evidente que Laura fica chocada, contudo a interação entre as duas é um dos melhores elementos do plot. A pseudonamorada e a irmã de Gaspard entram em conflito sem demora, principalmente porque a segunda faz questão de ser agressiva com a primeira – aliás, a atriz extrapola o texto áspero, com uma linguagem corporal igualmente belicosa (a cena da jaula é revoltante). Não demora para Laura perceber que Coline nutre um amor platônico não muito saudável por Gaspard (além de grotesco em alguns momentos), de modo que a disputa das duas pelo amor e pela atenção do rapaz é, enquanto temática, algo palpável.

Além de escrever o roteiro, Antony Cordier dirigiu o longa. É uma direção de qualidade precária, o que se infere logo da primeira cena, que começa como um plano longo bem enquadrado, seguido de um corte desnecessário e equívocos em massa. A própria divisão em capítulos é dispensável. Estranhamente – adjetivo que talvez não combine com esse filme -, não falta estilo a Cordier, como no uso compulsivo de slow motion. O problema, porém, é que o estilo destoa da função narrativa do seu uso, regra básica para a direção. Por exemplo, a trilha musical tem um ar de épico que não faz sentido algum para o longa; as canções não são ruins, simplesmente estão no filme errado (salvo a primeira, que usa instrumentos de percussão que preparam para a atmosfera prevalente). Com o slow motion, idem: é um recurso estilístico completamente inútil.

Não que tudo seja ruim na direção: os flashbacks, mesmo sem grande função narrativa, usam um filtro bem escolhido para simular o envelhecimento (o problema aqui é do roteiro de Cordier, não da direção do próprio cineasta), existem cenários bonitos (ainda que muito mal explorados) e uma lírica cena de dança com uso da cor vermelha indicando romance (a dança precedente, por outro lado, é mais um excesso dispensável). A nudez é outro recurso episodicamente bem utilizado: na cena do aquário ela é justificada pelo humor, então faz sentido (seria uma nudez evitável, mas bem coerente para o padrão do cinema francês), todavia, em outros momentos, ela é vulgar e forçada (é o caso da cena de Gaspard e Coline no banheiro e a que ele sai da cama para olhar pela janela). Nudez fora de um contexto diegético plausível é mero sensacionalismo da direção.

Bom mesmo é o figurino do longa: Laura é a única que usa vermelho (e somente essa cor, sempre), uma cor quente, mostrando que sua personalidade não se encaixa bem na família de Gaspard. Todos os outros usam cores frias, como azul e verde, ou tons pastéis, que transmitem suas personalidades frágeis quando comparadas às da moça. “A excêntrica família de Gaspard”, no final, é um filme sobre o rompimento com a infância. Existem melhores.

Filme assistido no Festival Varilux de Cinema Francês 2018.