Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“A FAMÍLIA MITCHELL E A REVOLTA DAS MÁQUINAS” – Faça concessões, exceto na fantasia

Famílias disfuncionais que não seguem algum padrão social, brigam, porém eventualmente se entendem no final aceitando as diferenças entre seus membros fazem parte de diversas histórias no cinema. “Pequena Miss Sunshine“, “Férias frustradas” e “Os excêntricos Tenenbaums” são alguns exemplos de produções que adotaram e ajudaram a formar essa construção narrativa. Após estes e outros títulos recorrerem a mesma premissa, será que uma trama assim apenas se sustentaria se encontrasse alguma forma absolutamente original de tratar o tema? A FAMÍLIA MITCHELL E A REVOLTA DAS MÁQUINAS mostra que a originalidade não precisar ser necessariamente temática, mas na abordagem que aproxima fantasia, tecnologia, desenvolvimento de personagens e a técnica de animação.

(© Sony Pictures / Divulgação)

Os Mitchell são a família em questão que irá passar por uma aventura capaz de reorganizar suas relações e perspectivas. Tudo se inicia quando Katie é aceita na faculdade de cinema de seus sonhos e imagina como será viver da sua paixão de fazer filmes e conviver com outros jovens também aficionados pela arte. Além disso, a garota começa a fazer planos de um futuro em que não continuará entrando em atrito com o pai Rick, alguém que não compreende nem incentiva sua paixão pelo cinema. No entanto, os planos não saem como o esperado: Rick decide levar Kate para a faculdade em uma viagem de carro, em que também estarão a mãe Linda, o filho mais novo Aaron e o cão Monchi, e no meio do caminho, os robôs se revoltam. Então, a única esperança para salvar o mundo é a família Mitchell.

Dentro daquela casa, cada pessoa possui seu próprio universo onde se refugia e evidencia como o lar não é convencional. Katie faz curtas-metragens cômicos para publicar no YouTube utilizando o cachorro de estimação, marionetes e efeitos visuais variados, até filtros de redes sociais. Aaron é obcecado por dinossauros e consegue passar o dia todo brincando com réplicas dos animais ou falando sobre o assunto para todos ao redor. Linda tenta criar uma imagem de família perfeita para se comparar aos vizinhos, personagens dignos daqueles comerciais idílicos da TV. E Rick prefere um estilo de vida mais analógico em contato direto com a natureza e com trabalhos manuais de construção e conserto, nada próximo de seus familiares. Apesar de todos eles serem “incomuns” ao seu modo, as diferenças que inicialmente mais geram divergências são aquelas entre pai e filha, sobretudo a sequência em que Rick desencoraja o sonho de Katie por temer que ela fracasse e, por acidente, quebra o computador dela.

Após apresentar a dinâmica familiar, Michael Rianda e Jeff Rowe entrelaçam o núcleo dos protagonistas e o núcleo da revolta dos robôs com eficiência. Em comum, os dois lidam com a questão da troca de algo por algum bem ou elemento supostamente melhor ou mais agradável. Muitas vezes, os personagens principais trocam o convívio em família pelos hobbies que mais apreciam. Ao mesmo tempo, o empresário Mark Bowman anuncia a substituição do aplicativo PAL, considerado a assistente mais inteligente do mundo, por uma tecnologia mais moderna, robôs com braços e pernas programados para cumprir todas as ordens de seu dono. Este é o ponto de partida para a insurreição liderada pelo sistema operacional que tem traços de um rosto humano na tela de um celular, motivada pela frustração de ser deixada de lado pelo criador que havia falado que sempre estaria ao seu lado e de ver a humanidade tratando a tecnologia sem qualquer cuidado (deixando aparelhos caírem ou quebrarem, passando a mão suja pela tela, deslizando os dedos descuidadamente e apertando qualquer tecla sem propósito).

Curiosamente, a dupla de diretores reconhece as referências que sua obra sugere, mas tenta levá-las para rumos menos comuns. Embora a proposta remeta a títulos como “Eu, robô“, “Matrix” e “Ela“, a narrativa abraça cada vez mais uma fantasia que não se enquadra exatamente nas convenções da ficção científica presentes nesses três filmes, voltados em alguma medida para uma abordagem realista. Algo semelhante acontece quando se pensa que grande parte das animações lembradas com maior frequência são da Disney/Pixar, estúdios também interessadas em usar os efeitos visuais para criar personagens, cenários e objetos mais realistas. Michael Rianda e Jeff Rowe preferem o fantástico, o lúdico, o inventivo e o cartunesco possíveis nas animações e nas tecnologias em 3D: os traços dos corpos dos personagens não são simétricos nem perfeitos (cabelos bagunçados e membros irregulares), a residência dos Mitchell combina adereços mais tecnológicos e rústicos em uma composição dissonante e as cores são sempre vibrantes e estilizadas. Destaque à parte fica por conta da inserção de caracteres que surgem na tela para simbolizar ações ou sentimentos, como símbolos de corações, nuvens de tempestade, arco-íris e lâmpada com uma ideia, ou traços estilizados como em uma revista em quadrinhos durante as sequências de perseguição de carro ou de construção de um plano contra a vilã.

Então, seria possível supor que a ficção científica seria o gênero mais provável para dar conta de uma trama interessada nos usos da tecnologia. Até certo ponto, a tecnologia está presente em uma posição de destaque, mas sendo desenvolvida por uma abordagem fantasiosa e não dentro de um universo que busque uma lógica fixa. A fantasia já marca presença nas sequências que evidenciam a dependência da humanidade em relação aos aparelhos eletrônicos – o sofrimento caricatural de Linda, Aaron e Katie ao abandonarem os dispositivos tecnológicos e terem que sustentar o olhar apenas entre si por imposição de Rick, além do caos gerado em diferentes países ao perderem o acesso ao wi-fi. Além disso, a construção fantástica das cenas também afeta a viagem de carro dos Mitchell até a faculdade da filha, já que tudo é registrado pela câmera de Katie no processo de filmagem de um pseudodocumentário em momentos que a animação assume a metalinguagem – ao invés de ser algo mecânico ou previsível, a filmagem parece praticamente um ato mágico, pois realiza efeitos irreais para as potencialidades da câmera e sugere que a jornada teria sido uma aventura repleta de obstáculos incríveis.

Ao longo do trajeto, os conflitos dramáticos entre pai e filha e o perigo resultante do plano dos robôs contra os seres humanos redirecionam o fantástico para possibilidades cada vez mais divertidas e inventivas. Após a irrupção do problema a ser resolvido, a família precisa encontrar um código capaz de desativar os androides e de salvar a humanidade, algo que a coloca em confronto direto com os seres artificiais. Nesses momentos, os diretores aproveitam para fazer referências curiosas a filmes pós-apocalípticos, notadamente “Mad Max: Estrada da fúria” e “Madrugada dos mortos“, e para criar diversas interações criativas entre seres humanos e máquinas. Neste último aspecto, ganham destaque os robôs “defeituosos” Eric e Deborahbot 5000 que fingem serem humanos, produzindo humor graças às entonações rígidas dos dubladores Beck Benett e Fred Armisen; a sequência de ação em um shopping, na qual os protagonistas enfrentam diferentes itens cotidianos (torradeiras, sofás, raquetes, bonecos…) manipulados por PAL; e algumas reações da vilã que combinam emoções de uma pessoa e ações de um celular (como a irritação ser indicada pelos movimentos de vibração do aparelho), algo potencializado pela dublagem de Olivia Colman.

No restante da equipe de dubladores, “A família Mitchell e a revolta das máquinas” desfruta de outros méritos. Maya Rudolph empresta sua voz a Linda e torna a mãe um símbolo de paz no meio dos embates entre Rick e Katie até surpreender a todos com uma intensidade defensiva para proteger os filhos. Michael Rianda dá uma entonação incomum para o menino Aaron, importante para demonstrar a singularidade do personagem. Acima de tudo, Abbi Jacobson e Danny McBride são as vozes que engrandecem os conflitos entre Katie e Rick, motivados pela dificuldade de ambos de aceitarem as diferenças do outro. É esse conflito que move a narrativa, mesmo quando a trama de uma revolução de máquinas aborda a tecnologia e chega a um clímax vibrante com sequências de ação intensas. Ao final e ao cabo, uma ideia geral perpassa tudo: é preciso fazer concessões. Podem ser concessões em relação à vida em família com seu parente. Podem ser concessões ao uso excessivo da tecnologia ou à rejeição completa desses recursos. Só não podem ser concessões a uma animação que utiliza a computação gráfica para criar uma fantasia imaginativa repleta de cores, energia e vida.