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“A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE” (1971) – O serial killer drogadito e a criança altruísta

O que não faltam em A FANTÁSTICA FÁBRICA DE CHOCOLATE, de 1971, são mensagens subliminares. Algumas delas são problemáticas (o olhar xenófobo do Paraguai); outras, críticas (representando o empresariado, o sr. Salt diz que seu ramo é de “nuts”, que significa tanto nozes quanto loucura). Em sua maioria, elas são imanentes, como o rótulo de Veruca como “ovo” (criança) “podre” (malcriada). Enquanto alegoria, extrair seu significado é necessário.

Charlie é um menino pobre que tem a esperança de encontrar um dentre os cinco bilhetes dourados colocados nas barras de chocolate Wonka. O que os bilhetes garantem é um passeio pela fábrica junto a Willy Wonka, dono da empresa, que promete ainda chocolates ilimitados e vitalícios a uma delas.

(© Warner Bros. / Divulgação)

Não há dúvida que o livro de Roald Dahl, responsável pela versão inicial do roteiro (posteriormente modificada por David Seltzer, não creditado), é um texto polissêmico. De acordo com uma famosa teoria, Willy Wonka seria um serial killer, fato corroborado tanto pelos acontecimentos infelizes (e de desfecho não exibido) das crianças quanto pela atuação de Gene Wilder no papel. De fato, Wilder interpreta Wonka sem demonstrar empatia pelo que ocorre com as crianças; mais do que isso, há certo sarcasmo em suas atitudes, como ao revirar os olhos quando uma das meninas reclama que a outra ganhou mais ou ao orientar Mike, sem insistir muito, a não entrar no “wonkavisão”. Egocêntrico (seu sobrenome está em inúmeras criações), genial (palavras do avô de Charlie) e imprevisível (o que demonstra na cambalhota inicial), Wilder faz de Wonka um homem exótico e ao mesmo tempo enigmático, tendendo ao macabro pelo sorriso irônico constante.

As crianças que conseguem o bilhete dourado são representações corpóreas de defeitos morais. Assim, Augustus (Michael Bollner) simboliza a gula ilimitada; Veruca (Julie Dawn Cole), a ganância imediatista; Violet (Denise Nickerson), a arrogância e o estrelismo; Mike (Paris Themmen), a agressividade e a alienação. Nos quatro casos, há indicativos de comportamentos ou visões reiteradas entre gerações. Assim, Augustus come igual à mãe, Veruca tem um pai que explora as funcionárias, os pais de Violet aproveitam o espaço para falar na televisão e o pai de Mike o promete uma arma real quando fizer doze anos. O caso de Charlie (Peter Ostrum), o protagonista, é completamente diferente: órfão de pai, pouco se sabe sobre a sua mãe e ele é o único capaz de agir altruisticamente. Exemplo disso está na cena em que Augustus cai no rio, quando apenas Charlie tenta ajudá-lo face à impassibilidade sádica de Wonka. O protagonista caracteriza a retidão, razão pela qual é ele o único recompensado ao final. Como todas as pessoas (até mesmo o professor), ele quer o bilhete dourado, mas não por cobiça (tal qual os outros quatro), mas por concretizar um sonho infantil de finalmente ter o que se quer, sobretudo considerando a condição socioeconômica de Charlie (os quatro avós dividem a cama em uma casa humilde de paredes cinzentas, um pão é um banquete etc.).

Apesar do rico texto que há por trás do longa, a direção de Mel Stuart deixa a desejar em vários aspectos, dependendo basicamente do script e do design de produção. A opção pelo musical pode dar à produção um ar marcante (para não ficar somente na fantasia), porém no gênero musical certamente o filme não é lembrado entre os melhores. Muitas músicas são ruins, a escolha de cantores não dialoga com a narrativa (um vendedor que aparece por cinco minutos canta mais que o protagonista), as coreografias são bem pobres (os oompa loompas dançando poderiam ser magnéticos) e muitos números são mal pensados (por que a mãe de Charlie canta uma mensagem direta para o garoto enquanto ele anda sozinho pela rua à noite?). Por outro lado, a repetitividade das canções dos oompa loompas (melodia e refrão) funcionam de maneira hipnótica, enriquecendo uma possível explicação para o significado do filme.

Em uma camada mais profunda, o filme é sobre as drogas. Todos que consomem alimentos na fábrica, sem exceção, passam por efeitos colaterais, circunstância que inclui até mesmo Charlie e seu avô, na cena do refrigerante. A direção propõe um passeio pelo surrealismo no design de produção, com cores vivas (dos efeitos visuais ao figurino das crianças), objetos peculiares (o contrato de parede, os suportes…) e cenários extremamente criativos (a sala que diminui) e inusitados (o beco de paredes labirínticas). Porém, é a partir do momento em que as personagens efetivamente consomem os doces – leia-se, fazem uso de entorpecentes – que se inicia a psicodelia, com cores vibrantes (dos oompa loompas), contrastes gráficos (o circular das bolhas versus o quadriculado do fundo), formas abstratas (o everlasting gobstopper) e texturas variadas (a grama, o rio, a parede etc.). Por exemplo, logo após a longa cena no jardim (onde ingerem doces) – a associação com psicotrópicos é evidenciada pelos inúmeros cogumelos -, inicia-se a viagem (literal e simbólica) de barco, uma cena sonora e graficamente psicodélica (Wonka cantarolando e recitando um poema enquanto o grupo passa por um corredor preto com arcos brancos assustadores, que depois ganha cores e imagens sem sentido, o que o avô de Charlie qualifica como “estranho, mas divertido”). O que acontece na fábrica não é real: Wonka, junto dos demais (já que bebe de uma flor que depois come) está sob efeito de entorpecentes.