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“A FESTA DE LÉO” – A festa de Rita [25 F. RIO]

O grupo Nós do Morro nasceu na comunidade do Morro do Vidigal no Rio de Janeiro com os objetivos de proporcionar formação técnica para o teatro e o cinema para os jovens e difundir o interesse pela arte. Desde o final da década de 1980, espetáculos teatrais foram concebidos e artistas se projetaram em escala nacional, como Babu Santana, Marcello Melo Jr. e Thiago Martins. Em 2023, o grupo lança o primeiro longa-metragem, A FESTA DE LÉO, rodado quase inteiramente no Vidigal e tendo atores e atrizes ligados ao Nós do Morro. Apesar do título, quem, de fato, conquista o filme para si é Rita, uma personagem símbolo da força sincera de uma história sobre afirmação social.

(© Coqueirão Pictures / Divulgação)

Na comunidade do Vidigal, Léo está comemorando doze anos de idade. Rita prepara uma festa para o filho enquanto ele se preocupa com a final do campeonato de futebol contra a Rocinha. Os planos da comemoração são afetados pela descoberta de que Dudu, pai do garoto, roubou o dinheiro para pagar dívidas com os traficantes locais que colocam sua vida em risco. Então, Rita precisa arrumar a quantia que salve Dudu e ainda organizar a festa do filho.

Eventualmente, alguns aspectos cênicos e visuais poderiam ser ajustados para fortalecer as escolhas dramáticas. Por vezes, a iluminação pode parecer um pouco estourada, sobretudo nas sequências iniciais na casa de Léo; por outras, a decupagem poderia criar composições mais cuidadosas para o espaço onde a ação se passa. Por mais que tais questionamentos sejam pertinentes, os diretores e roteiristas Luciana Bezerra e Gustavo Melo fazem um projeto que acentua o poder da sua dramaturgia. A sinceridade da dupla reside no fato de que ela trabalha a realidade popular de uma região do Rio de Janeiro a partir de um quadro multifacetado no qual mazelas e potencialidades são apresentadas. E este trabalho é construído em torno de Rita, vivida por Cintia Rosa, protagonista que sintetiza os vários elementos que formam o universo diegético a começar pelo amor materno dedicado a Léo em termos de cuidado, preocupação, zelo e autoridade.

A representação dessa realidade passa por momentos cômicos e dramáticos, leves e delicados. Rita é o ponto de partida que conecta sensações diversas enquanto a trama se desenrola e o cenário em questão demonstra suas múltiplas facetas. As subtramas que envolvem Léo sempre trazem um humor ingênuo ao mostrar a preparação para a final do campeonato de futebol, o primeiro interesse amoroso e a reação dos colegas de escola ao aniversário. O mesmo efeito está presente em parte do arco da protagonista, em especial a relação com a vizinhança e com sua amiga Andrea, interpretada por Mary Sheila, que convivem em meio a conflitos e a afetos do dia a dia. Simultaneamente, outras passagens criam um contraste em comparação com a comédia ali presente sem ter ressalvas para inserir questões complexas socialmente inesperadamente. É assim que Léo entra em casa e quase surpreende o pai se drogando, Rita encontra o filho jogando videogame com um jovem integrante do tráfico que deixa uma arma ao lado na cama, e a ameaça de morte em torno de Dudu abala toda a família.

Quando o olhar se volta para o retrato social feito, a narrativa ganha elementos interessantes adicionais, sejam eles diegéticos, sejam eles extradiegéticos. A partir do ponto de vista de Rita, os personagens coadjuvantes são apresentados para conhecer suas próprias trajetórias e potencializar traços da mãe de Léo. Andrea representa uma mulher expansiva que não aceita desaforo e se impõe quando algo se coloca contra ela, o que pode proporcionar momentos cômicos (a cobrança pela pensão para o ex-marido) ou conflituosos (os desentendimentos com a amiga enquanto tentam ajudar a resolver o problema da dívida). Dudu simboliza um homem que demonstra carinho real pelo filho e se frustra por não conseguir ser mais presente para o garoto, ao mesmo tempo que traduz com eficiência as complicações de um sujeito que acredita ter sempre uma solução rápida para suas adversidades. Já a equipe do filme e o elenco cumpre um papel importante de permitir ao Nós do Morro criar suas próprias narrativas, reunindo nomes como Luciana Bezerra, Gustavo Melo, Jonathan Haagensen, Micael Borges, Thiago Martins, Jonathan Azevedo, Roberta Rodrigues e Mary Sheila.

À medida que a trama afunila para enfrentar a ameaça em torno de Dudu e insinuar as eventuais consequências, o desenvolvimento de Rita prossegue para dar conta de outras nuances da personagem. A protagonista corre contra o tempo para levantar o dinheiro para os traficantes, o que a faz interagir com outros moradores da comunidade e vivenciar diferentes situações para arrecadar a quantia necessária. Acompanhar os eventos do terceiro ato permitem à narrativa explorar dimensões distintas da evolução dramática de Rita, alguém que tenta inicialmente manter suas emoções sob controle sem confrontar diretamente quem a desagrada e atravessa um percurso de transformação até solucionar o conflito central. Ao longo de seu arco, ela demonstra as vulnerabilidades de quem sofre por precisar ser sempre forte por si mesma e pelos demais e quase cede aos impulsos contrários ao seu caráter motivada pelo desespero de uma situação extrema. A preparação do clímax é moldada ainda por uma montagem paralela que acompanha os núcleos de Dudu, Léo e Rita até todos convergirem para o desfecho.

Levando em consideração o universo temático e as discussões sociais propostas por “A festa de Léo“, o clímax não se resume apenas a dar um fim ao conflito central da trama. A conclusão também passa pelo ponto derradeiro da transformação de Rita. Pensando nas narrativas comerciais que se encerram com um final feliz em que tudo precisa ser resolvido de forma harmônica, Luciana Bezerra e Gustavo Melo negam essa facilidade que não se adequa ao universo em construção. Nesse sentido, as últimas sequências podem ser entendidas como corajosas em algum nível por lidarem com a relação entre Dudu e Rita sob uma perspectiva social que explora a fundo o que ela significa. Ao adotar esse recorte, o filme evita as soluções apaziguadoras para colocar em evidência os embates que não se fecham facilmente e podem ser enfrentados continuamente a partir da união de Rita, Andrea e outras mulheres.

*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).