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“A FILHA PERDIDA” – Medo de não dar conta

Há três ideias fundamentais em A FILHA PERDIDA: maternidade, feminilidade e respeito. O filme é complexo não apenas em razão dessas ideias, que já são multidimensionais em si mesmas, mas também porque a maneira como ele as desenvolve evita quaisquer obviedades e se pauta no real. É um real que muitos não querem ver, mas que nem por isso deixa de ser real.

Leda, uma professora de Literatura Comparada, chega na (fictícia) ilha de Kyopelli, na Grécia, para passar as férias. A tranquilidade almejada é comprometida, porém, com a chegada de uma família que faz com que ela se recorde de um passado doloroso.

(© Netflix / Divulgação)

Baseando-se no livro de Elena Ferrante, a diretora (surpreendentemente, em seu primeiro trabalho de direção de longa) e roteirista Maggie Gyllenhaal não elabora uma trama complexa, mas parte de uma protagonista complexa. A opção por uma narrativa character-driven combina estilisticamente com o que o filme se propõe, ainda que em prejuízo de coadjuvantes profundos e de uma narrativa densa. Nada disso importa, mas apenas Leda, vivida por uma impecável Olivia Colman. A professora universitária se afunda em dores pretéritas na medida em que acompanha a família que chega na praia, reagindo mais do que agindo. Em razão do perfil reativo (e não ativo) de Leda, suas emoções são retraídas, demonstradas apenas por um olho lacrimejando ou uma expressão de tristeza, o que Colman expõe maravilhosamente bem.

No elenco estão ainda bons nomes, como Ed Harris e Peter Sarsgaard, além de outros não tão bons, como Dakota Johnson. Não obstante, Johnson tem papel importante no filme, porquanto sua personagem, Nina, é uma versão mais jovem da própria Leda. Por exemplo, enquanto a primeira tem relações sexuais fora do casamento, a segunda se recorda de quando fez o mesmo quando tinha a sua idade. A narrativa é composta de uma linha temporal diegética principal, no presente, além de outra linha, secundária, do pretérito diegético. No começo, o pretérito diegético aparece apenas através de flashbacks, contudo a sua importância cresce à medida que a trama se desenvolve, resultando em uma linha própria.

A dinâmica entre as duas linhas temporais se inicia com o sumiço de uma criança, momento em que Leda se recorda de quando foi ela a mãe aflita com o desaparecimento da própria filha. É este o gatilho para o surgimento dos flashbacks, mas não para que Leda efetivamente retorne ao passado. Na cena em que Elena joga água em sua mãe, todavia, surge o primeiro e principal gatilho para as recordações de Leda. A relação mãe-filha, um dos pilares do longa, aparenta ter contorno adocicado, como se, para a protagonista, fosse uma memória agradável. Não é esse, porém, o caso: de maneira coerente, o filme mostra o lado real da maternidade, sem romantizá-la. Desse modo, Leda se lembra muito mais das broncas e dos conflitos com as filhas pequenas do que dos momentos bons. Talvez ela não tivesse o perfil ideal para ser mãe, o que é reforçado pelas seguidas cenas em que ela não demonstra nenhuma paciência com Bianca e Martha. O casamento, igualmente, não é romantizado. O sexo não é perfeito e possivelmente parceiros externos podem dar mais prazer.

Visualmente, o design de produção se esmera no uso de tons de azul e de branco no presente diegético, das roupas aos ambientes, cores que combinam com os cenários gregos dessa linha temporal. No pretérito diegético, contudo, o mesmo esmero não existe, prevalecendo cores foscas (em especial o marrom), sem nenhum destaque específico. A única exceção está na cena em que toca “Livin’ on a prayer”, de Bon Jovi, quando Leda usa um vestido vermelho, destoando claramente do visual da película como um todo.

Maternidade é o assunto principal de “A filha perdida”, seguido de feminilidade. Em terceiro lugar está o respeito, o que é algo especialmente tocante para a protagonista. Na cena do cinema, Leda fica incomodada pelos arruaceiros, mas se sente pessoalmente atacada quando eles demonstram não ter nenhum respeito por ela. Revolta semelhante ela sentia quando as filhas a desrespeitavam. A relação que ela então cria com a boneca não é com o passado que teve, mas com o que gostaria de ter tido, já que sua experiência com as filhas não foi minimamente próxima à ideal. No fundo, ela confessa que seu verdadeiro medo era não “dar conta” delas. Um medo real igual ao medo sentido por inúmeras outras mães representadas no filme.