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“A HISTÓRIA OFICIAL” – Abra os olhos

Muitos países têm presenciado a reorganização da extrema direita na política. É assim, por exemplo, na Hungria, Polônia e Itália com a formação de partidos ou governos autoritários. Não é preciso se restringir apenas à Europa para identificar outros casos. Na América, EUA, Brasil e Argentina também atravessam cenário similar. Na sociedade argentina, o símbolo mais recente desse agrupamento político é Javier Milei, candidato à presidência em 2023. Entre as demonstrações de autoritarismo, ele minimiza os efeitos da ditadura civil-militar no país e relativiza a repressão daquele Estado. Tal prática coloca novamente na ordem do dia a importância da preservação da memória e do conhecimento da história para combater novas ondas reacionárias, algo que está na base do filme A HISTÓRIA OFICIAL.

(© Europa Filmes / Divulgação)

Quem não tem consciência da realidade em que se encontra é a professora Alicia. Ela é casada com o empresário Roberto e mãe adotiva da pequena Gaby. Em sua rotina, trabalha na escola dando aulas de história para adolescentes, cuida da filha e mantém uma vida social com reuniões com casais amigos. O desconhecimento da situação política da Argentina na década de 1980 começa a se desfazer quando reencontra Ana, uma velha amiga que volta do exílio, e passa a investigar a origem da filha em busca da sua família biológica. A partir daí, Alicia se dá conta do que acontece no país e fora de seu universo aparentemente perfeito.

Existe uma contradição na posição inicial da protagonista que é explorada rapidamente pela narrativa. Em tese, uma professora de história deveria estar atenta à conjuntura de seu país e ter uma postura crítica. Porém, Alicia é conservadora e trata seu objeto de estudo e ensino como algo teórico e pertencente a um passado que não dialoga com o presente. Estudar políticos republicanos argentinos do início do século XIX, que defendem a liberdade como direito político fundamental, não a faz analisar sua própria realidade. A relação com os alunos é baseada na disciplina rígida, tanto que os jovens e até outro professor se sentem acuados quando ela chega à sala no fim de uma aula mais espontânea. Além disso, a educadora não flexibiliza em nada suas estratégias didáticas, rejeitando as conexões com a atualidade (o momento em que os estudantes colam recortes de jornal no quadro) e o pensamento crítico dos jovens. Por mais que diga que a história serve para explicar o mundo e para ser a memória de um país, ela mesma não incorpora a fala em sua prática.

Outros ambientes nos quais a personagem está inserida carregam a sensação de que a personagem tem os olhos fechados diante do mundo ao redor. A música cantada toda noite com Gaby traz um ironia fina a respeito do que falta à professora (“No país em que não me lembro, dou três passos e me perco”). A ausência de Ana por muitos anos não é compreendida plenamente por Alicia, que desconhece a violência sofrida pela amiga. O local de trabalho de Roberto é afetado pelo temor de alguns funcionários serem convocados para interrogatórios, o que cresce quando alguns desaparecem. Há ainda pistas sutis dadas pelo diretor Luis Puenzo ao longo da narrativa, capazes de contextualizar a época e seus paradoxos sem a necessidade de discorrer longamente sobre cada aspecto. Uma transmissão de rádio cita indiretamente a questão da censura, a capa de uma revista deixada de lado em uma sala de recepção mostra a crise econômica da Argentina e uma conversa entre coadjuvantes em um bar tratam da Guerra das Malvinas. As cenas assim se multiplicam e a protagonista não consegue perceber os sinais.

Luis Puenzo também evidencia visualmente como Alicia está alheia à ditadura argentina e como o entorno se manifesta cada vez mais sobre sua vida. É comum assistir a sequências no primeiro ato em que a professora perde destaque no quadro porque a decupagem valoriza outros personagens. Quando a protagonista está em um jantar com amigos e a conversa gira em torno do que é socialismo ou do poder de um general presente no local, a câmera a deixa em uma posição tão discreta que até parece não estar ali afinal não é assunto do qual participa ativamente. Em outra ocasião, um jantar feito por ela e Roberto para Ana faz a câmera se deslocar gradualmente para enquadrar a amiga e o marido com mais ênfase, justamente quando a cena começa a tratar da repressão estatal. A cada minuto que passa, o próprio filme parece querer retirar Alicia de sua alienação criando momentos simbólicos que evocam formas de violência do período, sobretudo a entrada repentina em um quarto onde Gaby está com uma boneca de meninos brincando com armas como se fosse a invasão de policiais para prender alguém.

A alienação de Alicia em relação à ditadura começa a ser dissolvida quando os efeitos do regime tocam mais diretamente na personagem. Há uma sequência particularmente expressiva para iniciar a transição entre desconhecimento e conhecimento da realidade, envolvendo a protagonista e Ana. Inicialmente, as duas amigas conversam em tom leve sobre sua amizade e as vidas pessoais até tudo ser transformado para revelações dolorosas dos acontecimentos que levaram a amiga a se exilar. Nesse instante, Norma Aleandro e Chunchuna Villafañe transitam muito bem entre a comédia e o drama para retratar suas personagens. A partir daí, Alicia questiona a constituição da própria família querendo saber as origens da filha adotiva e entra em atritos com o marido que quer deixar o passado para trás. É o momento em que o roteiro aborda a questão dos desaparecimentos políticos provocados pela ditadura e a mobilização das Madres y Abuelas de Plaza de Mayo, colocando em evidência a luta dessas mulheres por respostas para o paradeiro de seus filhos e netos desaparecidos. A própria concepção visual se altera, pois Alicia entra de vez no centro do quadro e acompanha manifestações públicas de protesto contra a ditadura.

Embora a investigação da protagonista a faça abrir os olhos para situações violentas antes desconhecidas, a narrativa explora com cuidado as problemáticas ligadas à ditadura argentina. Haveria o risco de fazer a obra assumir um viés hermético demais ou excessivamente esquemático se tentasse criar e divulgar uma tese sociológica, mas o diretor evita essa armadilha. O processo gradual de conscientização da professora e os silêncios da sociedade tornam as discussões sutis e repletas de insinuações ou temas reprimidos. As divergências familiares de Roberto com o pai e o irmão levantam o debate sobre as disputas ideológicas entre direita e esquerda dentro até de uma família. O desentendimento entre Roberto e Ana traz à tona a a controvérsia a respeito da cumplicidade com um regime autoritário. E o mistério em torno dos pais biológicos de Gaby fazem alusão aos sequestros de filhos de “subversivos” para controlar a mentalidade das novas gerações. Mesmo que não seja pensado conscientemente, uma espécie de quebra-cabeça se forma porque o público tenta compreender as relações entre os personagens e seu lugar social.

Chegado o terceiro ato, “A história oficial” não pretende dar respostas fáceis e definitivas. O confronto final entre Alicia e Roberto diz menos sobre as explicações exatas sobre o que realmente aconteceu com a adoção de Gaby. A cena, a mais intensa dramaturgicamente graças ao trabalho de Norma Aleandro e Héctor Alterio, trabalha os diferentes comportamentos sociais que deixaram a relação entre Estado e sociedade durante a ditadura argentina complexa. Alguns grupos podem ter resistido contra o poder dos militares (os pais da menina), apoiado o regime em busca de prosperidade material (empresários, religiosos…) ou se mantido alheio às questões políticas em função de sua vivência comum do cotidiano. Este momento é extremamente revelador de tudo que pode estar envolvido em uma briga de casal, na qual a mulher abre os olhos para reconhecer os desdobramentos de um segredo familiar e o homem expõe suas vulnerabilidades e seus delitos. Ao mesmo tempo, Gaby canta o verso “No país em que não me lembro, dou três passos e me perco” e ganha um sentido trágico que reforça a importância da memória e da história. As duas são valiosas para abrir os olhos para os eventos do passado e os riscos de seus retornos para o presente.