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“A HORA DA ESTRELA” – Contexto de infelicidade

A visão de mundo de A HORA DA ESTRELA é pessimista em sua essência: a sociedade é machista, o trabalho é precarizado, a pobreza impera e as pessoas não são felizes. Apesar disso, sua protagonista é uma jovem fascinante, cuja personalidade cativa ao combinar curiosidade com timidez, conseguindo ofuscar, em parte, as ressalvas da negatividade que a cerca.

Macabéa tem dezenove anos e está sozinha no mundo. Sem conhecer seus pais, foi criada pela tia, agora falecida. Trabalhando como datilógrafa, sua vida pode mudar quando conhece Olímpico, que, assim como ela, saiu do nordeste para morar em São Paulo. Mais que um namorado, ele pode oferecer a ela a almejada felicidade.

(©️ Sessão Vitrine Petrobrás / Divulgação)

As perspectivas para ser feliz no futuro, porém, a julgar pelo presente, não são boas. José Dumont é capaz de deixar o público revoltado com Olímpico, um homem narcisista e cínico. Quando ainda está conhecendo Macabéa, percebe que têm muito em comum, a diferença, que faz com que se sinta superior, é que ele leva a sério uma aspiração de caráter quase onírico de se tornar rico a partir de uma atividade cujo conteúdo claramente desconhece. Olímpico tem delírios de grandeza como se fosse um deus vivendo no Olimpo, mas não percebe que, intelectualmente, ele é muito mais limitado que Macabéa, e – o que é pior – se irrita com a curiosidade constante da moça, que faz perguntas cujas respostas ele não pode oferecer. Isso faz com que ele precise desdenhar da sua curiosidade, expondo o machismo como válvula de escape, ora com frases de reprovação genérica (“a zona tá cheia de rapariga querendo saber demais”), ora a humilhando diretamente.

Toda a vaidade de Olímpico (o gel no cabelo é bastante simbólico) parece ausente em Macabéa. Marcelia Cartaxo encanta no modo quase infantil com que a protagonista se comporta, como ao dançar uma valsa de Strauss, ao cantarolar “Una furtiva lagrima” (que genuinamente a emociona, revelando uma sensibilidade artística que Olímpico jamais seria capaz de demonstrar) e, principalmente, ao proferir as falas com um tom devastadoramente ingênuo. É certo que os diálogos, extraídos da obra original de Clarice Lispector e transliterados em roteiro cinematográfico pela diretora Suzana Amaral e por Alfredo Oroz, exercem importante função ao enfatizar a puerícia de Macabéa, mas a interpretação de Cartaxo os eleva a um patamar ainda superior. Frases como “deu o quê?” (não compreendendo a referência sexual), “o que eu faço pra ter jeito” (quando ouve de Olímpico que “não tem jeito”) e “onde é a zona hein?” (achando que a referência é a um local específico, não à prostituição no geral) apenas se tornam verossímeis pelo trabalho formidável da atriz.

Certamente Macabéa incorpora sentimentos como timidez (quase não interage com as colegas de quarto) e inocência (chega a se desculpar por assinar um documento sem ver) e o texto constitui uma denúncia ao machismo. Constantemente chamada de feia pelo namorado, pelos chefes e mesmo por outras mulheres (a sororidade, portanto, inexiste), expressões como “mulher direita” são comuns no script, que no subtexto, contudo, transparece uma vontade de conhecer. Macabéa tem sede de conhecimento, primeiro, ao atentar às curiosidades apresentadas na rádio (tentando efetivamente entendê-las, não simplesmente ouvi-las acriticamente), segundo, ao tentar tirar suas dúvidas com Olímpico, e terceiro, ao buscar alguma forma de expressão sexual. Nos dois primeiros casos, trata-se de um conhecimento intelectual; no último, um autoconhecimento (a masturbação) e um conhecimento do corpo masculino (o plano-detalhe da axila). Existem similaridades com Olímpico, como a origem humilde, mas ela tem um potencial que ele se nega a ter.

Entretanto, o filme não quer permitir que a vontade de conhecer extrapole as condições reais. O trabalho é precarizado (a protagonista recebe menos que um salário mínimo e ainda é obrigada, eventualmente, a fazer horas extras); a situação é de pobreza (ela tem poucos objetos pessoais, divide um quarto com várias outras moças e as necessidades fisiológicas são resolvidas de maneira bastante rústica, para dizer o mínimo). Um dos chefes parece se compadecer, assim como a sortista vivida por Fernanda Montenegro (sobre a personagem, apesar dos diversos adereços, há um acerto ao não exagerar no tom, bastando a composição estética), porém a empatia é superficial e rara, como se percebe da conduta de Glória (Tamara Taxman). Acontece que as personagens de “A hora da estrela” não trilham um caminho de felicidade, mas de limitações sociais, quando não arrependimentos ou falta de sorte. A personalidade de Macabéa é tão formosa quanto as flores que a cercam (na mesa do trabalho, no parque); a protagonista cativa ao ser cativada por coisas simples como o metrô de São Paulo e pregos e parafusos. Nada abala a sua felicidade. Isso só muda quando algo a abala: o contexto se sobrepõe ao individual.