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“A JAULA” – Mentalidade mesopotâmica

O Código de Hamurabi (1.770 a. C.) adotava a lei de talião, segundo a qual a resposta a uma ofensa deveria ser através da vingança privada, porém na mesma proporção – o famoso “olho por olho, dente por dente”. O que ocorre em A JAULA também consiste em vingança privada, porém não com a mesma proporção (a não ser que se entenda que o patrimônio vale mais que a liberdade e a integridade física), ou seja, é um retrato da descrença completa, em níveis estratosféricos de desumanidade e hipocrisia. Mas não por isso falso ou exagerado, pelo contrário.

Djalma se aproxima de um carro para praticar um furto. As portas estão trancadas, mas um truque com uma bola de tênis o permite entrar. Lá dentro, ele se sente bastante confortável, o problema é que não vai conseguir sair tão cedo. É o começo de um jogo de gato e rato com um médico rico que faz de seu veículo um cárcere.

(© Star Distribution / Divulgação)

Versão brasileira do argentino “4×4”, “A jaula” é bastante explícito em sua proposta. Nos primeiros minutos, uma apresentadora de televisão critica os índices de criminalidade (a “bandidagem”) que assolam a “família brasileira”. Aos poucos, as expressões usadas esclarecem a representação de um grupo de pessoas do Brasil hodierno, que, para simplificar, serão aqui chamadas “conservadoras”. São aqueles que falam “cada um por si e Deus acima de todos” e “a corrupção é um câncer” e que usam expressões como “cidadão de bem” e “imprensa ativista”. Não apenas em terras tupiniquins, no mundo todo houve uma onda de conservadorismo nos últimos anos.

O discurso dos “cidadãos de bem” derrete a partir da sua hipocrisia. Não pode ser associado a qualquer tipo de bem (do ponto de vista ético) uma pessoa (ainda mais um médico) que deliberadamente arrisca a vida de uma pessoa que planejava subtrair parte de seu patrimônio. Djalma estava praticando um crime, porém a resposta do “doutor” (Alexandre Nero, razoável) acaba sendo desproporcional e também criminosa. A hipocrisia do “doutor” (vocativo que ele exige de todos para não ser, em suas palavras, “comparado com vagabundo”) não é latente, mas explícita, como ao descrever a sua profissão. O fato de ter sido vítima de seguidos crimes certamente explicam o seu trauma e a vontade de vingança, porém a sociedade deixa de ser civilizada quando o espancamento de um ladrão na rua é naturalizada e até elogiada.

O roteiro de Gastón Duprat e Mariano Cohn, adaptado por João Cândido, expõe a espetacularização da barbárie, de modo que a sequência do terceiro ato é mais que verossímil. Há bastante preocupação com a verossimilhança, seja ao explicar o encarceramento (carro blindado e à prova de som, buzina sem funcionar etc.), seja ao retratar descaradamente, como mencionado, o discurso conservador (que aqui está sendo generalizado para fins de simplificação, é claro). Visualmente, o suor e o sangue fortalecem a verossimilhança procurada, ao passo que as elipses de noites escuras e dias claros fornece naturalidade à narrativa.

O discurso progressista permeia o outro polo da relação, porém sem um representante claro. Djalma é criminoso que vira vítima de um crime, não alguém com uma bandeira como é o caso do médico. Chay Suede força um sotaque paulista, mas apresenta atuação intensa no papel principal. A progressão em suas emoções é palpável: no começo, tranquilo tirando selfies e depredando o carro por dentro, seu desespero cresce quando não consegue abrir as portas. Na cena em que uma mulher se aproxima do veículo, a esperança se torna angústia. Está próximo de uma mulher seminua, pode tocar seus seios pelo vidro, mas é o próprio vidro que os coloca distante. Há repercussões psicológicas da tortura a que é submetido, criando histórias para as pessoas ao seu redor. O longa deixa claro que Djalma não tem perfil de herói (uma cicatriz na testa, a “ficha” mencionada pelo médico), mas deixa para o espectador as conclusões óbvias sobre a barbárie que lhe acomete.

João Wainer tem domínio da mise en scène principalmente nos dois primeiros atos – o terceiro não é nada original e o desfecho decepciona -, quando quase todas as cenas são filmadas dentro do carro. Há muito acontecendo ao redor de Djalma, porém o espectador é colocado ao seu lado, enclausurado e angustiado com a clausura. Nos primeiros minutos do cárcere, a montagem é acelerada, com uma redução dos cortes na medida em que o protagonista perde a sua energia. Há uma cena de suspensão, filmada em contreplongée, em que a luz amarela de um poste surge como uma iluminação simbólica do alívio.

Mas não há alívio em “A jaula”. Certamente haverá quem ache que o médico está correto. O filme desnuda a hipocrisia de alguns conservadores, aqueles que querem voltar a tempos anteriores à antiga Mesopotâmia. Contudo, existem dois problemas: a crítica se esvazia quando Djalma não tem personalidade, não se sabe suas motivações; além disso, quem pensa como o médico não é capaz de se comover com o sofrimento do jovem. A mentalidade mesopotâmica precisa de mais força para ser abandonada.