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“A LENDA DE CANDYMAN” – Os perigos reais nada têm de doce

Na superfície, pode parecer que A LENDA DE CANDYMAN é oportunismo da indústria cinematográfica, aproveitando a recepção calorosa que o público tem dado ao terror e se apropriando de um clássico sólido (que envelheceu bem e cuja mitologia é consistente o suficiente para ampliação). Entretanto, se o mote do filme tinha inspiração no fim do século XIX e se procurava conscientizar seu público no fim do século XX, sua bandeira permanece necessária nas primeiras décadas do século XXI.

Anos após os acontecimentos envolvendo Helen Lyle no bairro de Cabrini-Green, as edificações foram demolidas e o local agora está gentrificado. Curioso com a transformação, o artista plástico Anthony McCoy acredita que lá poderá encontrar inspiração para novas obras. Ao conhecer William Burke, morador da região desde aquela época, Anthony fica fascinado pela história envolvendo o lendário Candyman, fascínio que se torna perigoso para ele e para todos que o cercam.

(© Universal Pictures / Divulgação)

O filme dirigido por Nia DaCosta é claramente uma homenagem ao de 1992, tendo a cineasta lançado um curta animado, em 2020, recontando a lenda. Além de participações especiais, DaCosta traz referências bastante claras a “O mistério de Candyman”, como a investigação de Anthony (tirando fotos de seu objeto inicial de estudo tal qual Helen havia feito) e os planos aéreos exibidos durante os créditos. Após um prólogo pouco assustador (e narrativamente justificado apenas posteriormente), os créditos surgem em planos nos quais são filmados arranha-céus em contreplongée, o exato oposto da filmagem (também aérea, mas em plongée) do clássico.

Dentre as simbologias adotadas na película, a do espelho é a mais presente, aparecendo nos minutos iniciais (com os logotipos animados) e nos finais (o olhar limitado ao retrovisor, aumentando o distanciamento simbólico entre as personagens). Candyman tem nos espelhos um portal para seu ingresso na realidade, a partir (como prega a lenda desde sua primeira formulação) da menção de seu nome cinco vezes. Em uma segunda camada, a ideia de lavagem é igualmente empregada de maneira simbólica, primeiro como uma denúncia àqueles que defendem a pureza racial (supremacistas brancos) e segundo como a persistência das vidas negras, encaradas por eles como manchas que não desaparecem mesmo com lavagens (de acordo com William). Na cena mais gore (e mais irrelevante em termos narrativos) do filme (a das estudantes no banheiro), sua mensagem primordial se torna explícita: vidas negras importam.

Coerente com a mitologia do Candyman, as abelhas recebem dois significados absolutamente distintos: primeiro, quando William descreve a atuação policial sanguinária e mórbida tal qual o ataque de um enxame; depois, quando o mesmo William explica que o próprio Candyman é um enxame. De certo modo, o roteiro escrito por DaCosta com Jordan Peele e Win Rosenfeld tem um formato espelhado, não sendo o enxame de abelhas o único exemplo. Isso também ocorre com a concepção de arte adotada na película, reflexo metalinguístico da própria sociedade. Anthony é um artista cujas obras condenam o racismo estrutural, porém ele mesmo é objeto de censura de Finley (Rebecca Spence), uma crítica de arte (branca) que maquia seu racismo no discurso profissional (nesse caso, há também uma sátira aos críticos de arte, como forma de alfinetá-los, a começar pela expressão blasé da atriz). Ou seja, a arte de Anthony é veículo para sua crítica ao racismo, mas ele, o artista, é alvo de críticas de uma pessoa (veladamente) racista.

Colman Domingo compreende bem a dubiedade de William, personagem cujos propósitos tardam para ficar claros. No elenco está ainda Teyonah Parris como Brianna, em ótima interpretação. Namorada de Anthony, este vivido por Yahya Abdul-Mateen II, a jovem brilha ao confrontá-lo e ao se tornar alvo dos ataques espirituais, sendo a personagem mais cativante do longa. Quando contracenam, Parris ofusca consideravelmente Abdul-Mateen II, que, em regra, não deixa a desejar – salvo na estranha cena em que Anthony fica ébrio, momento pouco coeso com o texto (ao menos até então) e nada orgânico no contexto (ele praticamente aparece assim de maneira repentina, sem um progresso ou motivos bem delimitados).

Para quem deseja um banho de sangue no melhor estilo slasher, é possível que “A lenda de Candyman” acabe frustrando. Há gore no derramamento de sangue inocente como gosta o espírito macabro, mas também na picada levada por Anthony, reforçando a proposta de terror inteligente e pouco dependente de jump scares. É o estilo Jordan Peele, que não dirigiu o filme, mas, como produtor e roteirista, certamente teve influência direta no resultado final. Não são muitos os assassinatos bárbaros perpetrados por Candyman e há apenas uma cena em que os moldes tradicionais do terror são empregados (fuga da vítima indefesa à noite e em locais escuros). É um pós-terror que, enquanto tal, não quer amedrontar o espectador com o que está na tela, mas assustá-lo com o real que está fora da tela (ainda hoje). Perto de perigos como o exibido no retumbante desfecho, Candyman é bem doce.