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“A LINHA” – A gota d’água [46 MICSP]

A gota d’água pode significar o fim de algo, mas também um novo começo – o que muda é o ponto de vista. Algumas situações se revelam irremediáveis, em outras a ameaça de rompimento é na verdade um blefe. Não é esse o caso das personagens de A LINHA, cuja gota d’água é muito mais complexa do que um fim ou um começo.

Christina tem três filhas: Margaret, com um histórico de violência; Louise, grávida de gêmeos; e Marion, ainda na infância. Depois de agredir a mãe, Margaret é proibida de se aproximar a menos de cem metros dela, o que motiva Marion a pintar uma linha, fora de casa, delimitando essa distância de proibição. Porém, Margaret luta contra uma intensa vontade de, a despeito dos acontecimentos, permanecer próxima ao núcleo familiar.

(© Bandita Films / Divulgação)

Louise (India Hair) é uma personagem instrumental e sem maior relevância, assim como Julien (Benjamin Biolay), que é um amigo de Margaret que a acolhe por saber que não há mais ninguém que o faça. O corpo de Margaret é testemunha de seu comportamento violento: não existem apenas os hematomas no rosto após a briga com a mãe, mas marcas no corpo, como uma cicatriz na clavícula, além de uma quantidade considerável de sangue derramado na banheira da casa de Julien. Ele pode estabelecer regras para ela, como a vedação a novos episódios (sob pena de expulsão da sua casa), mas isso talvez signifique uma mudança comportamental inviável.

A Margaret de uma incrível Stéphanie Blanchoud surge como uma vilã arrependida: sempre com desculpas para as agressões (o que justifica a censura de Louise), mas interessada em saber as notícias sobre a mãe, fazendo questionamentos a esse respeito para Marion, consertando o banco do piano e oferecendo aulas de canto. É possível acompanhar a família de longe, isto é, por fora da linha traçada por Marion, mas Margaret é uma infratora por natureza, ela precisa se aproximar de Christina, ignorando a proibição judicial. A diretora Ursula Meier elabora uma cena chocante na qual não é a linha, mas os vidros e as portas de um veículo, que impedem essa aproximação. Margaret alcança o desespero, não parecendo a mesma do maravilhoso (e igualmente chocante) prólogo – com grandiosidade, a cena é embalada por uma música erudita, slow motion e um ar épico indescritível naquilo que é mostrado. O final elaborado pela cineasta é minimalista em termos de recursos técnicos (sem slow motion, por exemplo), mas igualmente grandioso dentro do contexto em que se insere.

Tão incrível quanto Blanchoud é Valeria Bruni Tedeschi no papel de Christina. Se tudo começa com a agressão de uma mãe pela própria filha, o julgamento de cada uma delas parece fácil, mas não é o caso do que faz o roteiro de Meier, Blanchoud e Antoine Jaccoud. Na verdade, o que importa não é o que motivou Margaret a entrar em vias de fato contra Christina, isso apenas traça o backstory de uma família claramente disfuncional e que se revela desequilibrada a todo instante (ao menos no que concerne aos adultos). Christina se vitimiza em demasia perante Marion, referindo-se a si mesma como “pobre mamãe” por não ter sorte com as filhas, desconsiderando que justamente face à filha menor o seu cuidado é diminuto – sagaz, o roteiro encontra ali uma brecha para que Margaret supra a ausência materna, escancarando que as relações não são tão simples quanto uma filha desumana e uma mãe agredida.

Mais que isso, Christina tem uma personalidade patética ao abraçar uma fragilidade seletiva e exibir o novo namorado como um troféu. Ela não se cansa de afirmar as sequelas da agressão de Margaret, mas não aceita o rótulo de invalidez e se regozija sempre que pode pelos feitos musicais (ao tocar o piano perante um pequeno público ou ao colocar uma gravação sua). Hervé (Dali Benssalah) não é um namorado, mas um objeto a ser exibido infantilmente como uma conquista e, ainda assim, que deve ser respeitado como autoridade parental por Marion (Elli Spagnolo).

A filha menor sofre os reflexos dos familiares problemáticos, amparando-se na religião como solução para esses problemas. Mesmo na infância, Marion é a mais adulta de todos eles e a que tem os sentimentos mais caridosos. Depois da sequência natalina, que vai da conduta ridícula de Christina ao suspense do reencontro com Margaret (mais uma ótima cena), Marion protagoniza o filme, retirando um pouco da sua potência. A pujança retorna quando Christina e Margaret dão um direcionamento à gota d’água que foi a briga dos primeiros minutos de filme, mostrando que não existem apenas finais e começos.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.