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“A LISTA DE SCHINDLER” – Coisificação do humano

Considerado um dos maiores filósofos da Modernidade, Immanuel Kant se tornou um marco ao estabelecer, no século XVIII, a diferença entre pessoas e coisas. Como mostra a História, essa diferença nem sempre foi respeitada, sendo o Holocausto um dos maiores exemplos de atrocidades contra pessoas. A LISTA DE SCHINDLER mostra o quão vil pode ser a coisificação do ser humano.

No centro da estória, baseada em fatos, está o comerciante Oskar Schindler, um homem que soube se aproveitar do nazismo – e de seus contatos influentes no Reich – para lucrar muito usando mão-de-obra judia. Depois, todavia, ele provou estar disposto a abrir mão do próprio lucro para salvar vidas judias.

Universal Pictures / Divulgação)

Existem duas especificidades do filme que podem afastá-lo do grande público. A primeira é a fotografia de Janusz Kamiński, quase integralmente em preto e branco (o que infelizmente não é do agrado de parcela dos espectadores). São muitas as funções dessa opção, como por exemplo atenuar a barbaridade das cenas violentas (o sangue de uma pessoa, recém assassinada, escorrendo na neve, acaba tendo um impacto um pouco menor), dar um tom histórico à película e acentuar a frieza do Holocausto. Igualmente, a utilização pontual de cores é de enorme significado: a luz das velas em cerimônias religiosas cria uma esfera simbólica de distanciamento dos horrores ao redor; a menina, com sua aura angelical, permite que a cor de seu casaco apareça, enquanto a cor em si representa o sangue derramado pelos nazistas.

Também a duração da película – três horas e quinze minutos – pode soar como um desestímulo. Por outro lado, trata-se de uma obra de Steven Spielberg, um dos cineastas que melhor consegue entreter o público. O que ele faz aqui não é, evidentemente, um trabalho de entretenimento leve como “Tubarão” e “Indiana Jones”. Em 1985 ele já havia demonstrado o talento para o drama com “A cor púrpura”, confirmando a habilidade em 1993. Abordando o Holocausto, ele traça uma estratégia distinta para fisgar o espectador: no filme de 1985, o fio condutor é a trajetória dramática da protagonista; no de 1993, ainda que exista um protagonista claro, é a contextualização que realmente comove. O tratamento dado aos judeus aparece de forma crua, sem concessões. O espectador fica horrorizado com o que vê, cansando-se talvez pela tristeza das cenas, mas não pela duração do filme. Não é necessário identificar as personagens: ver tamanha humilhação, famílias expulsas de suas casas, sofrendo lançamentos de lama em sua direção por pessoas que gritando adeus, é suficiente para causar abalo na plateia. Em resumo, a empatia decorre de um senso de humanidade, não de identificação pura e simples.

O longa é embalado pela trilha de John Williams – um verdadeiro espetáculo. O Leitmotiv da película, além de ser uma música belíssima, é tocado em três versões – uma no violão, uma no violino e outra no piano -, fornecendo diversas possibilidades interpretativas do som meloso e melancólico na medida certa. Na trilha, chamam a atenção duas presenças inesperadas: “Por una cabeza”, clássico tango de Gardel que se destaca em qualquer circunstância; e “Bach’s English Suite No. 2”, que rouba o foco, em razão da agilidade da música, em uma sequência bem violenta. Outro aspecto técnico que merece menção é a primorosa montagem de Michael Kahn, com belíssimos raccords que dão fluidez à obra. A título exemplificativo, basta citar o corte por associação visual de semelhança gráfica através da fumaça (da vela para a locomotiva, nos minutos iniciais, o que metaforicamente também representa as mortes dos judeus) e o corte por associação textual (em um plano, Schindler diz “não poderia ser melhor”, no plano seguinte, uma mulher declara que “poderia ser pior”, uma ironia extremamente ácida).

Trata-se de um filme feito para quem está disposto a ver os horrores daquele que provavelmente foi o período mais lamentável da história da humanidade. Talvez não seja exagero qualificar a obra como sádica – o que, ressalte-se, não elide os méritos técnicos e principalmente a sua função pedagógica. Maltratando o espectador, Spielberg usa suspense com personagens secundárias, não anunciando de imediato se vão realmente morrer como tudo indica (na cena do operário que faz dobradiças e na cena do banho das mulheres). Com um elenco numeroso, há um trio principal que se destaca: Liam Neeson, Ben Kingsley e Ralph Fiennes.

Fiennes faz um trabalho compatível com a proposta: um oficial da SS sem muito intelecto (tanto que foi manipulado bastante por Schindler) e com dificuldade de lidar com a própria vulnerabilidade (esta, oriunda de uma paixão proibida para ele). Kingsley parece ter em Itzhak Stern um papel mais modesto, porém existem sutilezas na personagem. Stern tem imensa dificuldade em compreender por que o patrão faz o que faz, não conseguindo detectar um agradecimento. Quieto, ele trabalha nos bastidores e percebe o quão significativa foi a atuação de Schindler. Assim como Kingsley, Neeson entende as múltiplas facetas da personagem que interpreta: Schindler é observador, mas não se permite ser inerte (como em relação aos pais da mulher que pede ajuda); tem postura firme, todavia sem agressividade (como quando vai atrás de Stern na estação de trem); tem uma conduta pessoal questionável (em especial em relação ao matrimônio), contudo o enorme coração que possui é inegável (como na dificuldade em escolher apenas uma secretária). Schindler não desejava ser um herói (não aceita a gratidão, por exemplo), mas acabou entrando para a História nessa condição.

O filósofo mencionado no primeiro parágrafo do presente texto estabeleceu que, enquanto as coisas (bens) têm preço, as pessoas têm valor – e é isso que distingue pessoas de objetos. Foi com essa ideia que Kant permitiu a construção da ideia de dignidade da pessoa humana, prevista em diversos tratados internacionais e na Constituição brasileira, dentre outros. Para os nazistas, contudo, judeus não eram enxergados como pessoas – logo, tinham seu preço. Em outros contextos, a coisificação do humano ocorre ainda hoje em vários lugares – e é essa a reflexão proposta pelo filme.