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“A MÃE” – As mães em perene angústia [46 MICSP]

Apenas as mães que perderam seus filhos para a violência praticada pelo Estado sabem descrever a aflição de seu sumiço, o sufocamento da sua ausência e o asco pela indiferença das autoridades. Ao invés de olhar o tema do ponto de vista desse genocídio sistemático, A MÃE adota o ângulo das genitoras que perdem a sua prole.

Maria migrou do nordeste para o centro-oeste para dar uma vida melhor a seu filho, Valdo. Vendedora ambulante, em um dia comum ela sai de casa para trabalhar e, quando volta, o filho não está em casa. Sem notícia de seu paradeiro, ela inicia uma busca na qual descobre o envolvimento da polícia militar no desaparecimento de Valdo.

(© Cup Filmes / Divulgação)

O diretor Cristiano Burlan adota inteligentes metáforas visuais para incrementar a narrativa escrita por ele e por Ana Carolina Marinho: uma placa escrita “término” logo nos minutos iniciais, a associação dos manequins (como se fossem cadáveres) e da máquina (não muito diferente do fliperama em que Valdo jogou antes) na loja coreana, sua mise en scène constrói um luto reprimido. Marcélia Cartaxo expressa em Maria a compreensão de que o momento exige racionalidade ao invés de desespero – aliás, a própria escolha do nome é bastante precisa, seja na interpretação bíblica, seja em uma possível referência à canção “Maria, Maria”.

Ela não pode se desesperar, precisa pensar o que pode ter acontecido. Mergulhar na tristeza seria adiantar um lamento que talvez nem fosse necessário. Maria tem esperança, representada pela cor verde na fotografia (os gramados, o figurino, a decoração da casa da protagonista etc.). Seu sentimento é ambíguo, pois, apesar de fragilizada, ela precisa ser forte. Bastam momentos de maiores emoções, contudo, para que sua racionalidade seja abalada, como na cena na escola, no Instituto Médico Legal e no mercado, nas quais Maria não consegue conter manifestações mais eloquentes.

A contextualização tem grande importância no filme, o que ocorre, por exemplo, no establishing shot da região onde Maria mora, mostrando que é uma zona de periferia, e nas tomadas no quarto que mãe e filho dividem, o que revela tanto a proximidade afetiva dos dois quanto a condição financeira familiar. Nada é dito sobre o pai de Valdo, o que importa é o notório carinho entre ele e a genitora, ainda que manifestado de maneiras distintas – enquanto ela verbaliza suas emoções, ele se diverte com brincadeiras provocativas e inocentes. Dunstin Farias tem em Valdo uma dose de infantilidade, que é demonstrada, dentre outras formas, pelas brincadeiras com a mãe e, principalmente, na cena do ônibus e do fliperama. Ele não está pronto para encarar uma realidade adulta de violência policial.

Maria pode não ter estudo e não compreender as reformas governamentais, mas sabe que há uma intersecção perigosíssima entre o crime organizado e a polícia. Essa ideia de intersecção se repete em uma aproximação artística e em uma extensão histórica. A aproximação artística é feita entre a poesia e o rap: em uma cena, Maria ouve um pastor recitar um poema de Patativa do Assaré; na seguinte, Valdo canta rap com seu amigo Jonas. Se o poeta tivesse sido vítima do Estado, o país teria perdido um importante artista. A extensão histórica é mais intrincada, trata-se da compreensão da polícia militar como uma continuidade da ditadura militar. Embora exista uma cena que faça essa correlação, falta solidez no argumento porque ele não é explorado suficientemente – afinal, não é apenas pelos filhos desaparecidos cujo destino é desconhecido que se verifica uma similitude.

Flertando com o mistério, “A mãe” faz de Maria uma investigadora particular, dado que o que realmente ocorreu com Valdo é desconhecido também pelo espectador. Nesse sentido, a revelação desse mistério é frustrante, pois seria melhor deixar espaço para o público criar a solução a partir das pistas coletadas pela protagonista. Ela recorre à vizinha, ao chefe do crime organizado, à polícia e a qualquer pessoa que pudesse dar uma dica, mesmo que ínfima. Ainda pior do que saber que o filho morreu é não saber o que aconteceu com ele. Encarar a realidade de que o Estado é muitas vezes cúmplice disso – e que as vítimas são também as mães em perene angústia – é indispensável para, quem sabe, mudar essa situação.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.