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“A MALDIÇÃO DA MANSÃO BLY” – Dramas do terror

Há dois anos, “A maldição da residência Hill” estreou sem alardes e fez um sucesso instantâneo reunindo drama e terror. Nesse final de ano, A MALDIÇÃO DA MANSÃO BLY chega à Netflix para consolidar de vez a ideia de Mike Flanagan de criar uma série de antologias com temporadas independentes. Cercada de expectativas por conta de sua antecessora, a nova história está à altura do alto nível já entregue ao usar o horror como invólucro para um melancólico drama sobre a morte.

(© Netflix / Divulgação)

Dessa vez se inspirando no conto “A volta do parafuso” de Henry James, a trama se passa na Inglaterra de 1987. Dani Clayton é uma jovem professora contratada por Henry Wingrave para trabalhar na enorme propriedade da família, cuidando de seus dois sobrinhos órfãos. Ela se divide entre educar e tomar conta de Miles e Flora, tendo a ajuda da governanta Hannah, do cozinheiro Owen e da jardineira Jamie. Tudo se complica quando os irmãos começam a agir de forma estranha e a residência revela situações enigmáticas.

Partindo de traços do terror gótico, a produção utiliza os dois primeiros episódios para estabelecer seu universo. Há antecedentes importantes à chegada do protagonista ao local que influenciam na dinâmica evocativa de que algo está fora do lugar, como o falecimento dos pais das crianças e da professora anterior, o golpe de Peter enquanto trabalhava para Henry e o trauma do passado de Dani. Na linha narrativa principal que acompanhamos, existem detalhes sugestivos em torno da casa para indicar seu aspecto sobrenatural, dentre eles os corredores largos e cômodos interligados que parecem sugerir alguma ameaça à espreita, as pegadas de lama na entrada que tem uma origem desconhecida e os objetos cênicos que parecem se mover quando ninguém olha para eles. Além de tudo isso, as atuações de Amelie Bea Smith e Benjamin Evan Ainsworth fazem com que as crianças pareçam ora ameaçadoras ora vulneráveis.

É justamente através dos personagens mirins que a série começa a definir sua abordagem do terror. Os dois atores são dirigidos para transitar entre a inocência da idade (ou até a excepcionalidade de crianças prodígios) e a estranheza de atitudes inesperadas (Miles se comporta por vezes como um adulto e Flora age como se precisasse proteger todos de algum perigo sobrenatural); os irmãos também sugerem saber mais sobre o que acontece no lugar do que revelam explicitamente – quando Flora manuseia suas bonecas e olha por cima do ombro de Dani durantes algumas conversas. São escolhas formais que traduzem como o terror não é fruto de jump scares, mas de uma atmosfera de sugestão que oculta a figura assustadora até exibi-la para chocar com sua aparição – dispensando muitas vezes a elevação repentina dos sons, a narrativa trabalha aflição das imagens por elas mesmas, como se nota na sequência de brincadeira de esconde-esconde.

Contudo, Mike Flanagan e os demais diretores estão interessados em novamente explorar os conflitos dramáticos a ponto de escancarar suas facetas amedrontadoras. Diferentemente de “A maldição da residência Hill“, a temporada mais recente desenvolve ainda mais o drama carregado em torno das tragédias nas vidas dos personagens, especialmente relacionadas às mortes de entes queridos. Há diálogos bastante expressivos a respeito das maneiras de enfrentar o luto, de seguir vivendo apesar das dores da perda, de aceitar a morte como um ponto inevitável das trajetórias de cada um e projetar como seriam os mortos lidando com sua condição. Reunindo tais questionamentos, está a cena em que Dani e Jamie começam conversando sobre uma flor e terminam refletindo sobre as ligações mais complexas entre vida e morte do que o senso comum supõe.

A morte, portanto, é a fonte do medo que a obra propõe, não apenas porque poderia gerar imagens aflitivas, mas também porque exigiria respostas desafiadoras dos personagens. Todos percorrem duras jornadas no sentido de se adaptarem ao fim da vida: entre os adultos, destacam-se Dani, Hannah e Henry por serem os mais perseguidos pelos traumas; já entre os mais jovens, Miles e Flora se sentem influenciados pelo peso espiritual da mansão enquanto vivenciam seus próprios processos de luto. Dani e Henry se sentem responsáveis por suas tragédias e devem aprender a enfrentar a materialização de seus demônios internos, ao passo que Hannah atravessa um caminho muito específico de aceitação da morte. Por outro lado, as duas crianças se encontram expostas a um vórtice mortal dentro da residência, criado por uma sucessão de infortúnios ocorridos em diferentes períodos.

O avanço dos episódios reafirma a predominância do drama em comparação com o terror inicial. Até existem momentos de horror mais (as cenas em que os fantasmas são revelados), porém é o componente dramático que mais se sobressai. Esse desdobramento imprevisível se intensifica quando o roteiro atribui novas nuances à morte, já que ela pode ocorrer como resultado do esquecimento: uma pessoa que não se lembra de sua identidade, origens, motivações e é esquecida pelos demais deixa de existir. Esteticamente, a questão da memória e do ato de lembrar/esquecer se traduz em uma montagem fragmentada, que faz muitos personagens se perderem em devaneios do passado através de cortes e transições temporais abruptos. O mesmo aspecto temático se reflete na caracterização dos espíritos, capazes de mostrar que a morte física pode ser somente o início de uma jornada entristecida de desaparecimento.

Embora o terror seja menos articulado dessa vez, “A maldição da mansão Bly” tem o mérito de construir um universo temático e estético tocante e assustador. O medo não precisa vir exclusivamente de um vilão único e a comoção não se prende apenas ao naturalismo das relações humanas. Cada um dessas reações se desprende de núcleos em um passado distante, no presente narrativo e em um futuro próximo, renovando ciclos de dormir, acordar, caminhar e esquecer que envolvem ameaças incomuns em um cenário antinatural. Então, não seria espantoso derramar lágrimas com um romance em uma série de terror, pois ele tem o papel de simbolizar com intensidade as metáforas em torno da morte, do esquecimento e do prolongamento da vida através de recordações de momentos específicos.