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“A METADE DE NÓS” – Estética de apartamento

Condensar dramas burgueses dentro de apartamentos está longe de ser uma realização contemporânea. Filmes influentes do cinema brasileiro, como o “Noite vazia” de Walter Hugo Khouri, o fizeram para investigar estados da alma, levantar questões sobre a vida e a mortalidade e unificar o estado de espectadores e personagens. Em uma época de exacerbação do realismo no audiovisual, entretanto, a rigidez dessas narrativas surte um efeito apático, ainda que atravesse, no roteiro, as quatro paredes dessa burguesia. Esse é o caso de A METADE DE NÓS, romance de luto restrito à observação fria de seus protagonistas.

Após o suicídio de seu filho, Felipe, um casal de idosos testemunha a eclosão do próprio relacionamento. Enquanto Carlos investe em sua autodescoberta, atraído por um antigo colega do falecido, Francisca é torturada pelo ímpeto de entender o que levou à morte. Entre desejos, medos e cicatrizes, eles lutam para ressignificar a sua forma de levar a vida.

A direção de Flavio Botelho se inspira em um caso real vivido pelo cineasta, cuja irmã se suicidou em 2007. Ela insere com bastante rapidez a atmosfera soturna em que o casal se vê inserido, assumindo os tons cinzentos e o som abafado como representantes pasteurizados de sua representação. A sugestão domina o processamento da perda do filho, repentino e nunca dramatizado. Se por um lado esse recurso desperta alguma curiosidade, por outro se afilia à tradição dos personagens entreabertos, representantes de tantos outros e por isso, em casos de fragilidade, pouco individualizados.

(© Pandora Filmes / Divulgação)

Diferente de diminuir a construção de uma ambiguidade, instigante especialmente no efeito que exerce sobre Carlos (Cacá Amaral), o problema aqui se reflete na maneira como o filme se esquiva, uma vez assumido o seu formato imediato, das discussões que ameaça desenvolver.

Seria uma hipocrisia acusar a “estética de apartamento” e associar ao longa a obrigação de conduzir, por começo meio e fim, as suas veias mais narrativas. Entretanto, é no flerte constante com uma pluralidade de assuntos que a obra fundamenta o seu desenvolvimento. Questões essas que acabam muito mais pontilhadas do que revertidas em qualquer proposta entre imagem e espectador.

Com suas paredes apertadas, cantos improváveis e cômodos escondidos, um apartamento pode oferecer diversas abordagens. É o uso que se faz desse espaço, simbólico ou objetivo, que determina as experiências capazes de oferecer.

No caso de “A metade de nós“, o que se vende enquanto apatia se transforma em desinteresse. Desinteresse, talvez, não pelas duplas de personagens, mas por quem assiste. Existe ali uma sucessão de desencontros, especialmente na trajetória de Francisca (Denise Weinberg), que limitam a sensibilidade daqueles que o acompanham, convertendo seus comentários mais críticos em uma espécie de fetiche de tragédias pessoais.

É como se o projeto partisse de um pressuposto histórico na lógica de se retratar o luto pelo audiovisual, reproduzindo muitos de seus códigos – especialmente, como mencionado anteriormente, na esfera estética -, apenas pelo desejo de se sobressair pela subversão dos mesmos. Isso mina uma série de potências apresentados em seu decorrer, especialmente a relação que nasce entre Carlos e Hugo (Kelner Macêdo).

Existe um magnetismo curioso na sequência em que os dois passam uma primeira noite juntos, registrada contraluz, ilustrando as personagens, sugerindo a sua presença, dois homens perdidos à procura de si, de um e do outro. É um dos raros momentos em que a sugestão funciona enquanto natureza da cena, e não como ferramenta onde é depositada toda a lógica de ordenamento do filme, mais preocupado em provar a própria profundidade do que em de fato desenvolvê-la.

Resta assim um drama pouco interessado em suas próprias propostas. O não desenvolvimento de qualquer relação estilística, enclausurado pela rigidez com a qual trabalha o seu teor sugestivo, corrobora para uma moda bastante recente que abusa de personagens suspensas e estruturas dramáticas que se ancoram em um falso experimentalismo. É como se existisse uma expectativa de compensação interna pelo próprio projeto, um alinhamento a uma lista de pré definições de um cinema “subversivo”, que encabeça um projeto de cinema dissociado da imagem propriamente dita.

Ainda que seja totalmente injusta uma necessidade de se configurar dentro de algum molde clássico, e sequer narrativo, o filme reforça o modismo de produções que convertem a falta de arestas em um novo tipo de aprisionamento. São filmes “de apartamento” que procuram na escala reduzida, “mais humana”, um exercício para demonstrar a sua própria inteligência ou grandiosidade autoral, despreocupados com o ímpeto de se filmar como verdadeira força motriz.