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“A MULHER QUE FUGIU” – O cinema como o simples

A MULHER QUE FUGIU é um filme simples, do melhor tipo, e do tipo que só meia dúzia de cineastas podem realizar, mas que atualmente só Hong Sang-soo parece conseguir filmar consistentemente. Este é provavelmente seu melhor filme desde o incrível “Certo agora, errado antes” porque consegue tanto com tão pouco, porque é uma meditação sobre tantas coisas em menos de 80 minutos, e porque está tão precisamente sintonizado com as crises de seu tempo. O fio condutor aqui é a enunciação de tensões – sociedade vs. privacidade, passado vs. presente, inércia vs. ação, onde sociedade, passado e inércia estão encarnados em presenças (e ausências) masculinas, e privacidade, presente e ação nas protagonistas femininas, portanto homens vs. mulheres é também uma tensão. Essas mulheres em questão – Gam-hee (Kim Min-hee) e as amigas que ela visita, Young-soon (Young-hwa Seo), Su-young (Song Seon-mi) e Woo-join (Sae-Byuk Kim) – são herdeiras das descobertas de “Stella Dallas”, de Charlotte Vale em “A estranha passageira”, de Cary Scott em “Tudo que o céu permite”. São independentes no sentido mais profundo da palavra, auto forjadas, em busca de si mesmas. Young-soon se divorciou do marido e usou o dinheiro para comprar uma casa, fez do fim um lar; e Su-young é solteira, economizou muito dinheiro, então agora pode “ter o que ela quiser”.

(© MUBI / Divulgação)

Homens aparecem cá e lá neste filme, de duas formas: em memórias relatadas (portanto mortos, em certo sentido, meramente lembrados) ou em sintomáticas interrupções inesperadas – um vizinho patético que diz que sua mulher tem medo de gatos, portanto Young-soo e sua colega devem para de alimentá-los; um ainda mais patético jovem poeta, que dormiu com Su-young numa única noite, e agora chora e lamenta na porta de seu apartamento; o marido de Woo-jin, ex-amante de Gam-hee, um autor que é agora uma personalidade cheia de si, um charlatão de programas televisivos. Todos eles são filmados com as costas viradas para nós, são tanto descartáveis quanto indispostos a tomarem responsabilidade por eles mesmos. São imagens de coisas e tempos passados, ilustrações de forças malignas: egoísmo, solipsismo, convenções sociais, conservadorismo moral. Cada um deles é respondido com uma porta na cara diferente. Perdem, são deixados para trás pela história, por mulheres, pelo filme, por quem o assiste. Um cineasta menor, entretanto, daria a essas mulheres controle absoluto sobre as coisas, sobre o mundo e as outras pessoas. Não é o caso, as coisas não são simples assim. Questões de nossa natureza e nosso destino e propósito seguem sem resposta, e seguimos longe de uma.

Entra Gam-hee, saindo as pressas do cinema/café ao fim de “A mulher que fugiu”. Há uma escolha a ser feita ali, no meio da rua. Ela é uma mulher que pode escolher, uma vitória em si. Ela pode, talvez subindo a rua, retornar para o marido, com quem ela por vezes parece legitimamente feliz; ela pode fugir de vez, talvez descendo a rua, ir embora e não voltar nunca mais, porque ela por vezes parece pedir ajuda, repetindo para todas as três amigas que visita: “essa é a primeira vez em cinco anos que estamos separados. Ela recebe de volta respostas sempre positivas, cheias de admiração, mas a repetição sugere que a vontade é de ouvir o oposto); Mas sua escolha é entrar novamente no lugar do qual acabou de sair, retornar a pequenina sala de cinema onde acabara de assistir um filme descrito por ela com uma única palavra, “pacífico”, sentar-se, e assisti-lo todo outra vez. A cena imediatamente remete a um momento anterior em que Gam-hee e Young-soon trocam as seguintes palavras:

Gam-hee: Você gosta de se encontrar com pessoas?

Young-soon: É o que todo mundo faz. É preciso.

Gam-hee: Eu costumo me encontrar com pessoas frequentemente.

Young-soon: É uma coisa que cansa.

Gam-hee: Eu não quero ver ninguém. Quando quero, digo coisas que não preciso dizer e faço coisas que não preciso fazer. Estou cansada disso.

Young-soon: Você mudou.

Estamos aprendendo, estamos chegando a algum lugar, estamos lentamente nos dando conta do que significa estar aqui, estar com, estar e ser. “A Mulher Que Fugiu” chega ao Brasil nessa semana, mas foi lançado em setembro de 2020, o ano que se trouxe algo, trouxe ensinamentos sobre isso, e nesse sentido, esse parece ser o mais 2020 dos filmes de 2020. Diferentemente da entropia invertida que curva o tempo em “Tenet” (negando o estar aqui), ou do egocentrismo quase arrogante de “Sibéria” (negando o estar com), ou o espetáculo do massacre de “Nova Ordem” (negando o estar e ser), o que desencadeia “A Mulher Que Fugiu” é o simples ato de encontrar o outro, encontrar a outra, de compartilhar nossa presença nesse mundo, de estar aqui com. Ainda assim, Hong Sang-soo também sabe que o mundo dos filmes, plenamente existente sem nós, onde nossas responsabilidades comunitárias morrem, segue atrativo, permanece a fantasia. Ainda há paz incomparável para ser encontrara nas telas. Enquanto assim for, o cinema seguirá como nosso maior educador.