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“A NOITE DO DIA 12” – Mistérios diegéticos e extradiegéticos

Um caso específico que assombra um policial. A dinâmica particular que um grupo de investigadores tem durante o trabalho. Os altos índices de feminicídio que são observados ao redor do mundo. Os três elementos formam A NOITE DO DIA 12, que pode parecer mais de um filme ao longo de sua narrativa. Em comum a todos os subtextos e subtramas, há uma abordagem de mistério. Em um nível imediato, a resolução de um crime faz parte do gênero mistério dentro da trama. Na construção estilística, um enigma extra precisa ser decifrado: por que não investir no debate mais sofisticado proposto pela obra?

(© Festival Filmelier no Cinema / Divulgação)

De acordo com o letreiro inicial, 20% dos assassinatos cometidos a cada ano na França ficam sem solução. O caso em questão a ser acompanhado, baseado em uma história real, é a morte brutal de Clara Royer em 2016. A jovem foi assassinada em um parque à noite após deixar a casa de uma amiga. Então, a investigação é designada para a equipe do detetive Yohan Vivés, um homem que jamais imaginaria que teria sua vida profissional marcada por um crime sem esclarecimentos.

Se a abertura já revela que o criminoso não foi encontrado, a narrativa precisa se desenvolver com outros conflitos e objetivos. No centro dramático está a investigação policial, mas sem encená-la como uma série de procedimentos que chegará ao culpado. Na verdade, o trabalho investigativo aparece como um conjunto de equívocos (por exemplo, o descontrole emocional de Marceau) ou como uma obsessão de Yohan. Detetives assombrados por casos em aberto são personagens conhecidos de thrillers ou do noir, como se vê, por exemplo, em “Zodíaco” em David Fincher. O protagonista não se encaixa bem no arquétipo, pois depende de uma metáfora pobre em torno do fato de andar de bicicleta apenas em um velódromo. Além disso, a progressão morosa e fria da narrativa dificulta a criação de um senso de urgência para a resolução do crime ou a caracterização de um personagem principal abalado emocionalmente. Vez ou outra, esses dois pontos surgem isolados e sem uma construção expressiva contínua.

Outra dimensão que faz parte de um mistério que admite não dar todas as respostas é a relação entre os investigadores. O diretor Dominik Moll cria sequências que enfocam as reuniões de trabalho ou alguns momentos livres de conversa descompromissada. É assim que eles falam sobre a eventual psicopatia do assassino e o casamento do mais jovem dos policiais, interagindo em cenas que tentam aproximar o público daquelas figuras. No entanto, essas passagens são tão burocráticas que não estabelecem vínculos emocionais ou sensações de espontaneidade. As tentativas de desenvolver alguns personagens coadjuvantes falham porque não se dá grande valor ou interesse à crise conjugal de Marceau após anos de matrimônio e ao pedido precoce de casamento de Boris. Consequentemente, os arcos periféricos apenas desviam a atenção daquele que possui mais força dramática.

As questões sociais suscitadas pela investigação policial são os aspectos mais poderosos da narrativa. Nesse sentido, o espectador não é convidado a se unir aos investigadores para tentar elucidar o mistério, mas é levado a perceber como a misoginia, o machismo e a violência de gênero fazem parte desse crime e da sociedade como um todo. Enquanto o assassino seria apenas um indivíduo, a mentalidade violenta do ato seria global e difundida entre vários outros homens. Conforme o trabalho dos policiais avança, o número de suspeitos se multiplica, todos eles, de algum modo, envolvidos amorosamente com a vítima. Todos eles inferiorizam Clara Royer por ela ter tido vários namorados e relacionamentos casuais. Um deles praticamente afirma que se relacionou com ela por pena, outro ironiza a morte dela como se fosse uma brincadeira, um terceiro escreveu uma música em que a ameaçava de morte e um quarto garante que a jovem se interessou por ele por conta da fúria sexual dele (o mesmo com passagens na polícia por agressão doméstica). De certa forma, todos seriam potenciais assassinos em função de atitudes odiosas contra Clara que poderiam se estender para as mulheres em geral.

Por que então postergar a abordagem do tema enquanto o roteiro tenta trabalhar elementos menos expressivos, como a relação entre os policiais e a obsessão de Yohan? Por que não aprofundar no recorte social do crime e ampliar sua discussão? Eventualmente, o filme até faz isso ao ampliar o escopo da misoginia e da discriminação de gênero para a própria polícia, demonstrando que a solução do crime seria apenas parte de um problema complexo. Yohan escuta de seus colegas de corporação comentários machistas e misóginos encontrados em diferentes espaços sociais, como a tese de que Clara poderia ter procurado o desfecho trágico que teve por conta de seu estilo de vida ou a teoria de que determinadas mulheres se interessariam por homens perigosos. Por que não evitar os desvios de rota que levam para os arcos periféricos? A resposta é mais um mistério, dessa vez que extrapola a obra e alcança as escolhas dos realizadores. Afinal, o tema principal é muitas vezes escanteado ou encenado a partir de decisões formais visual ou dramaticamente questionáveis, como a fusão do rosto do chefe de polícia com imagens do rosto dos suspeitos e os prejuízos à investigação causados pelo descontrole de Marceau.

Eventualmente, Dominik Moll parece reencontrar caminhos mais promissores para a trama. É o que ocorre quando a narrativa salta no tempo e avança para três anos no futuro. Em 2019, o caso estava arquivado, a equipe havia passado por alterações e a corporação já havia aceitado a falta de respostas para o crime. O roteiro do próprio diretor e de Gilles Marchand, baseado no livro “Une année à la PJ” de Pauline Guéna, ressignifica os conflitos ao inserir duas personagens femininas. Uma juíza estimula a reabertura do caso ao dar outro olhar a ele e uma nova policial fornece contribuições significativas para a investigação. A partir delas, Yohan se depara com dois questionamentos decisivos: as relações entre homens e mulheres estão seriamente comprometidas pelo machismo e pela violência de gênero enraizadas na sociedade; e um crime cometido por um homem contra uma mulher sendo investigado apenas por outros homens deixaria a perspectiva do caso inteiramente masculina. Essas novas questões poderiam elevar a força narrativa e dramática da produção se um novo mistério extradiegético não surgisse no terceiro ato.

Em teoria, a entrada das duas personagens femininas seria capaz dr redirecionar a trama para outras possibilidades. Seria possível reabrir o caso? Dar outra abordagem a ele? Buscar outro suspeito? Concentrar-se no fundo social relacionado ao crime? Desenvolver debates sobre o feminicídio? No entanto, o encaminhamento para a conclusão sofre com um perigoso abrandamento do tom, deixando uma nota amarga para um desfecho que insinua alguma leveza. A narrativa tenta ocultar a sensação de que o assassinato de Clara ficaria sem solução muito mais por conta da inépcia dos investigadores do que por dificuldades profundas na realidade de trabalho; o enigma em torno da identidade do assassino é substituído por algum quebra-cabeça deslocado acerca de uma fotografia feita por Marceau; e a discussão social sobre a situação das mulheres é novamente escanteada para dar a Yohan a chance de superar a pretensa obsessão metaforizada pela bicicleta. Assim, o mistério diegético do assassino convive com os mistérios extradiegéticos para os motivos de “A noite do dia 12” se sabotar tanto.

* Filme assistido na cobertura do Festival Filmelier no Cinema, de 2023.