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“A PEQUENA SEREIA” (1989) – O canto da sereia está no charme da juventude

Em 1937, a Disney lançou “Branca de Neve e os sete anões”, um dos maiores clássicos da História do Cinema. De 1970 (“Aristogatas”) a 1988 (“Oliver e seus companheiros” o estúdio viveu a que ficou conhecida como “Era de Bronze” ou “Era Sombria”, com animações sem grandes destaques. 1989, porém, foi o ano em que o estúdio recuperou o prestígio (e a bilheteria) no mercado cinematográfico com sua 28ª animação, A PEQUENA SEREIA, responsável pela “Renascença” das animações Disney.

O sonho da Princesa Ariel é deixar de ser sereia para se tornar humana. Seu desejo se torna ainda maior quando conhece e se apaixona por Eric, um príncipe humano. Sabendo do anseio da jovem, a bruxa do mar Ursula oferece a ela um acordo que aparentemente pode realizar tudo o que ela quer, mas por um preço altíssimo.

Walt Disney havia pensado em realizar “A pequena sereia”, mas o projeto saiu do papel apenas muito depois da sua morte. Foi necessário que os roteiristas John Musker e Ron Clements fizessem uma adaptação profunda do conto de fadas original de Hans Christian Andersen (no qual o script se baseou), que era muito mais sombrio. Com isso, foram importantes os elementos cômicos que caracterizam o family-friendly do estilo Disney, humor que se extrai de diálogos (Linguado dizendo que o navio naufragado era “muito molhado”), comportamentos (Ariel usando garfo e cachimbo na mesa), cenas inteiras (o embate entre Louis e Sebastião) e personagens (Sabidão, a hilária gaivota que rouba a cena sempre que aparece).

(© Disney / Divulgação)

Há de fato muitos elementos característicos do estúdio, como o abandono de uma personagem “babá” após um número musical (Sebastião é largado tal qual Zazu em “O rei leão”, de 1994) e a antropomorfização de animais, inclusive caracterizando-os muitas vezes como bons e maus (siris e peixes são bons, enguias são más). Mesmo sendo family-friendly, os parâmetros da época eram outros: não havendo o “politicamente correto”, Ariel poderia tranquilamente chamar Linguado de “frouxo”, assim como, com apenas dezesseis anos, abandonar o lar para se casar – circunstâncias não muito bem vistas na segunda década do século XXI.

Nada impediria que o filme fosse feito antes, sobretudo considerando a sua técnica de animação, o método de pintura feita à mão em celuloide, do qual “A pequena sereia” foi o último exemplar (a coloração das animações posteriores foi digital). Os desenhos e as pinturas feitos à mão são belíssimos, a começar pela construção de mundo, inicialmente opondo a superfície ao mar, como se a riqueza e a vivacidade das cores estivesse apenas no segundo ambiente, para depois mostrar que o primeiro não é sombrio e opaco como parecia. Por razões lógicas, o azul é intensamente empregado, com um impressionante leque de tons, e oposto ao amarelo e ao púrpura – ambos como sinônimo de algo ruim, aquele enquanto engano (nos raios do Rei Tritão, ao destruir os objetos do esconderijo de Ariel, ato do qual se arrepende, e no enganoso contrato de Ursula) e este como a maldade.

O detalhamento visual das personagens é soberbo, dos lábios de Sebastião aos tremeliques de medo de Linguado, da barba do Rei Tritão (inteligentemente, seu rosto é escondido, mas não sua barba, quando surpreende Ariel em seu esconderijo) aos olhos das enguias. É Ursula, porém, a personagem que mais encanta do ponto de vista imagético, ao unir cores (pele violeta, vestido preto, maquiagem vermelha), adereços (brincos roxos, colar de caracol) e expressões faciais típicas de uma vilã que disfarça suas reais intenções. Sua malícia é oposta à ingenuidade de Ariel, uma jovem intrépida e curiosa, mas facilmente impressionável (o encanto com um garfo é de uma candura sem igual) e pueril. Sebastião é a única personagem secundária que se transforma, na medida em que sua censura à imprudência de Ariel cede espaço a uma doce empatia. O arco da protagonista, por sua vez, é a tradução do coming of age que “A pequena sereia” representa: a vontade de conhecer o novo e se aventurar, a despeito dos riscos, quiçá encontrando o amor, ignorando as orientações parentais.

As composições de Alan Menken são ótimas, sobretudo com “Main Titles – The Little Mermaid” expressando bem os sentimentos audazes de Ariel. As letras de Howard Ashman (parceiro de Menken em “A Bela e a Fera”) são boas, mas as canções não se comparam às de animações posteriores como “O rei leão” e “Tarzan”. Os números musicais são bons, mas a direção de Clements e Musker muitas vezes deixa a desejar: “Part of your world” é a maior representação do filme e é muito compatível com sua protagonista, mas tem muitos trechos falados e a restrição de cenário (um só lugar, poucas cores) imprime alguma monotonia; “Under the sea” é impecável musicalmente e se tornou a mais famosa do longa, sendo excelente o uso do campo (animais e conchas como instrumentos, tartarugas dançando etc.); “Poor unfortunate souls” padece do mesmo mal da canção principal, sobretudo na falta de diversificação gráfica; “Kiss the girl” é um espetáculo visual e a música é boa, porém o entardecer exagera nas cores foscas.

Clements e Musker entregam um filme maravilhoso e memorável tanto no macro quanto no micro – há planos simplesmente paradigmáticos, como aquele em que Ariel aparece cantando para Eric na contraluz quando ele acorda e aquele em que ela sobe para a superfície e joga os cabelos para cima, mostrando apenas a silhueta também na contraluz. A produção não tem a pretensão de tornar nada mais complexo do que o necessário, por exemplo ao não explicar a razão pela qual Ursula é má (ela menciona que houve um tempo em que morava no palácio, mas isso não é explicado), diferente, por exemplo, de Scar em “O rei leão”. Entretanto, não é à toa que a animação se tornou o símbolo da “Renascença” das animações Disney: trata-se de um lindo musical animado cujo charme – seu canto da sereia – está naquilo que é mais característico da juventude, o brio e a obstinação de explorar o desconhecido.