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“A PIOR PESSOA DO MUNDO” – Transitoriedades

Muitos diretores produzem trilogias que não são resultado de uma franquia explícita. Os três filmes se aproximam e dialogam por conta da convergências de temas, abordagens e visões artísticas. No caso do cineasta Joachim Trier, existiria a trilogia de Oslo, formada por “Começar de novo” de 2006, “Oslo, 31 de agosto” de 2011 e A PIOR PESSOA DO MUNDO de 2021. Em comum, estas obras tratam dos conflitos existenciais de uma juventude que já nasceu tecnológica ou depende cada vez mais das telas eletrônicas. No mais novo trabalho, a temática é desenvolvida a partir da protagonista Julie, a personagem que representa os dilemas em torno da fugacidade das vidas contemporâneas.

(© Diamond Films / Divulgação)

Julie não sabe exatamente o que espera de sua carreira e de suas relações amorosas. Em uma noite, ela conhece Aksel, um famoso quadrinista quinze anos mais velho, e dois se apaixonam. Algum tempo depois, conhece também Eivind, um barista de café, que também está namorando. Então, a mulher deve decidir qual dos dois homens poderia ser um melhor parceiro para ela, assim como encontrar a profissão que a deixe mais satisfeita e um sentido para a própria vida. Entre idas e vindas por diferentes situações, Julie se debate internamente sobre qual seria sua identidade e quais seriam as formas de enfrentar os diversos problemas que aparecem pelo seu caminho. Enquanto, a juventude lida com a inevitabilidade das mudanças da vida, melancolia e existencialismo tomam conta do processo de autodescoberta.

Logo no princípio, uma cartela indica que a história da protagonista é dividida em prólogo, doze capítulos e epílogo. Ao longo desse recorte, uma trajetória geral é contada, remetendo ao estilo das comédias dramáticas coming of age. Julie atravessa momentos diversos, mas sempre tendo em vista problemas familiares (sobretudo com o pai que se divorciou da mãe dela e formou outra família), dúvidas acerca dos rumos de seus relacionamentos amorosos e incertezas quanto às escolhas profissionais. Por mais que tome decisões, tenha princípios bem definidos e sustente boa parte de suas convicções, ela se depara frequentemente com a imprevisibilidade da existência ao perceber que diversas ocasiões podem ser momentâneas e frágeis. A própria estrutura narrativa, moldada por cartelas que anunciam a chegada de cada novo capítulo, evoca a sensação de fugacidade, já que público e personagens transitam por pequenas tramas, quase esquetes, que têm suas resoluções próprias, a exemplo do que acontece com a viagem de Julie e Aksel para a casa de amigos dele e com o término do namoro de Eivind e Sunniva.

Inicialmente, a transformação rápida de acontecimentos e estágios da vida pode parecer cômica. Nas primeiras sequências, a montagem encadeia com grande velocidade as alterações pessoais e profissionais no caminho de Julie. Ela termina um namoro, muda o corte de cabelo e algumas roupas, sai do curso de medicina e experimenta a psicologia, o trabalho como vendedora em uma livraria e parece se achar como fotógrafa e evidencia sua falta de concentração por culpa da presença constante de telas de celular ou computador no cotidiano. Já na abertura, a atuação de Renate Reinsve começa a demonstrar a importância do trabalho da intérprete, que ajuda a dar o tom autoafirmativo e confiante de uma figura saída das comédias indies independentes. Posteriormente, o humor cede lugar para o drama, quando a interação problemática entre pai e filha ganha evidência em torno da ausência de Per Harald por mais que Julie se esforce para manter contato com a figura paterna – sob o pretexto de sofrer com dores crônicas no corpo que o impediriam de se deslocar, ele se mantém distante da filha sem admitir que abandonou sua primeira família.

Em um bar, Julie chega em outra etapa de sua vida que a leva para rotas distintas. Ela estava flertando com um homem até encontrar Aksel e mudar a pessoa por quem estava interessada (deixar o primeira indivíduo e conversar com o outro é outro indicativo das mudanças repentinas que podem ocorrer). A partir da primeira conversa, Julie e Aksel começam um relacionamento que convive com uma discordância: ele quer ter filhos, ela não. A divergência se acentua por conta do convívio com outros casais que têm seus filhos, da diferença de idades entre eles (Aksel deseja ser pai porque já se aproxima dos cinquenta anos) e também por outros assuntos, como a dedicação do homem pelos quadrinhos de humor provocativo que cria. A própria relação dos dois se desenvolve com alterações significativas, partindo do sexo sem compromisso para um namoro sério e para o término após a chegada de Eivind em cena. A partir do momento em que as dúvidas atormentam a protagonista, Renate Reinsve deixa de lado a performance cômica e investe nos silêncios intimistas nas sequências em que contempla a paisagem, sendo filmada de costas e em planos simétricos situados no centro do quadro.

O novo relacionamento com Eivind se inicia e progride na mesma lógica do provisório, das mudanças constantes e da fragilidade das certezas fixas. Antes de conhecer Julie, ele namorava Sunniva até o instante em que ela descobre ter descendência indígena e se interessa por causas ambientais e técnicas místicas. A princípio, Julie e Eivind se entendem muito bem porque têm a sensação de não precisarem fingir ser alguém que não são quando estão justos, porém esta é mais uma relação transitória na existência de ambos. Eles começam com flertes e brincadeiras eróticas, evoluem para um relacionamento sério (tendo em comum o fato de não quererem filhos) e entra em crise ao se desentenderem quanto aos planos para o futuro (ela não se satisfaz mais em apenas experimentar diferentes tipos de trabalho e deseja definir logo o que fará pelo resto da vida, enquanto ele parece não se preocupar em continuar trabalhando em uma cafeteria). Contraditoriamente, é no relacionamento com um homem que a atrai por valorizar apenas o momento que Julie começa a colocar em questão os planos para o futuro e a maternidade, questionando-se se sua vida pode passar por reviravoltas.

Ao observar as interações de Julie com os demais personagens e seus conflitos internos, é possível afirmar que o desenvolvimento do roteiro tem um peso importante na narrativa. No entanto, em algumas passagens, Joachim Trier propõe algumas construções visuais mais expressivas que dependem da montagem, da composição estética do quadro e de um realismo fantástico. Primeiramente, as transformações pelas quais a protagonista passa nos âmbitos pessoal e profissional são encadeadas com um ritmo ágil pela montagem, de modo a evidenciar o caráter passageiro daquelas situações. Em seguida, a sensação particular de que o tempo pode parar quando uma paixão surge é encenada para mostrar ao primeiro beijo de Julie e Eivind, filmada com o congelamento dos figurantes e das ações ao redor dos dois personagens. Além disso, quando a protagonista usa drogas e sofre os efeitos alucinógenos das substâncias, o diretor cria imagens surrealistas que misturam as frustrações com o pai, as dúvidas sobre a maternidade e o personagem principal dos quadrinhos de Aksel.

Depois de acompanhar Julie, Aksel e Eivind por toda a narrativa, “A pior pessoa do mundo” fornece sua visão geral sobre as efemeridades da vida. Os três personagens simbolizam e lidam de formas específicas com a percepção de que qualquer ideal de permanência estável seria ilusória, pois qualquer indivíduo conviveria com as incertezas de uma vida que se apoia em situações provisórias e instáveis. Aksel se decepciona com os limites do legado de sua arte diante de sua própria mortalidade, desejando muito mais permanecer em uma existência banal do que transcender a partir de suas criações. Eivind aparece de relance exercendo o papel que jamais havia imaginado seguir ao constituir sua própria família. E Julie se surpreende com a guinada inesperada que seu futuro toma após ter aceitado a reviravolta que menos desejava para si, justamente quando buscava uma estabilidade e não apenas pular de uma situação nova para outra. Qualquer que seja o cenário, desde a resignação imposta até o amadurecimento consciente, o filme desenvolve de modo magnético a certeza de que não há certeza em vidas que não podem ser completamente controladas.