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“A TAÇA PARTIDA” – Consertar o que está quebrado [45 MICSP]

Se a alça de uma caneca se quebra, em princípio, basta colar o pedaço quebrado de volta à parte intacta e o problema está resolvido. Contudo, isso nem sempre é possível e, de todo modo, a caneca já não será mais a mesma. Seria a mesma a lógica das relações humanas? É o que quer descobrir o protagonista de A TAÇA PARTIDA.

Em um passado não muito distante, Rodrigo tinha uma esposa, um filho e uma casa. Agora, Carla não é mais a sua esposa e já tem um novo namorado, a casa onde morava não é mais sua e ele pode visitar Julián apenas nos dias acertados com a mãe. Após a desolação da nova situação e decidido a mudá-la, Rodrigo espera o amanhecer para retomar o que tinha antes, nem que isso demore o dia inteiro.

Juan Pablo Miranda tem em Rodrigo um protagonista deveras interessante, o que o ator aproveita muito bem. Aparentemente atencioso (já que disposto a esperar a chegada da “tia” Nelly), ele não demora para mostrar ao espectador que a mentira será ferramenta útil para atingir seus objetivos (por isso, come o cereal de Julián, querendo dizer para Carla que, na sua companhia, o filho se alimenta bem). Com o desenvolvimento da narrativa, parece que ele é um homem folgado que ignora a vontade da ex-esposa, seja pela insistência em entrar, seja por descumprir o acordo de sair quando o filho for à escola. A Carla (María Jesús González) resta ceder à insistência voraz do ex-marido, primeiro afirmando que vai desligar o telefone, mas não muito tempo depois permitindo o ingresso na residência.

De fato, tudo leva a crer que Rodrigo retornou para tomar à força aquilo que achava que era seu, sobretudo o filho (como se fosse propriedade, não destinatário do seu afeto) e a casa (ou seja, Carla, nem tanto). Na verdade, a riqueza da personagem reside em uma fragilidade que ele não enxerga, um verdadeiro problema identitário em que ele precisa se auto-afirmar para assumir-se enquanto sujeito capaz de seguir o próprio caminho. São três fatores que levam a essa conclusão. O primeiro é a questão sexual: como relatado para Marianito, Rodrigo estava com dificuldade para ereção, sentindo maior conforto na cama que já foi sua. Depois, percebendo que Maxi estava assumindo o papel que já desempenhou, inverteu a situação e vestiu a roupa daquele que qualifica como o vilão da sua história (a mesma lógica se aplica ao churrasco). Terceiro, inseguro de seu desempenho como pai, precisa afirmar para Marianito que é melhor que Carla porque não colocou um intermediário na relação com Julián.

No entanto, Rodrigo é incapaz de enxergar o outro lado: mesmo se ejacular na cama, o leito não é mais seu e, cedo ou tarde, terá de sair dele; ainda que use a camisa de Maxi, a roupa não é a sua (quanto ao churrasco, mesmo querendo dar ao filho o que este gosta, a dificuldade financeira fala mais alto); e Rodrigo pode se declarar um bom pai, mas suas atitudes concretas não corroboram integralmente sua visão. Com inteligência, o diretor Esteban Cabezas (que assina o roteiro juntamente com Álvaro Ortega) coloca o menino frustrado em primeiro plano, de costas para o pai, versão gráfica da frustração na relação pai-filho.

Cabezas é certeiro na filmagem de seu longa, evitando recursos desnecessários. Nos minutos iniciais, o rosto de Maxi quase não aparece porque quem é importante ali é Carla, não ele. Quando Rodrigo sobe as escadas para falar com Carla, a câmera continua focada em Julián, de costas, com a comida em sua frente, para que o público compreenda o distanciamento do garoto em relação às conversas entre os pais – distância que não o torna alheio, mas mero ouvinte (como na cena da escada). Na imensa maioria das cenas, a câmera está estática, movimentando-se em círculo ao redor das personagens no momento em que Rodrigo entende que está se aproximando dos dias felizes de seu pretérito. No caso da razão de aspecto, há um fechamento no rosto das personagens quando elas estão em desconforto (como Carla ao atender a ligação do ex-marido), o que é coerente com a abertura quando acontece algo que alegra Rodrigo. Porém, o fechamento em sua região genital em uma cena íntima contradiz essa ideia, pois é um momento em que o protagonista está confortável.

O saldo de “A taça partida” é, sem dúvida, positivo. A despeito da contradição mencionada, do desfecho decepcionante e de uma trilha musical que pouco combina com o longa, os diálogos são muito bons e são várias as metáforas adequadas para representar a situação de Rodrigo (o vidro, o piso, a torneira). Ele precisa consertar a própria vida e, no fundo, sabe disso. O que ele parece não saber é que, ao contrário da caneca de Carla, relações humanas dificilmente podem ser coladas depois de quebradas.

* Filme assistido durante a cobertura da 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.