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“A VIRGEM DE AGOSTO” – Flanando

Filme assistido na plataforma da FILMICCA (clique aqui para acessar a página).

Em 2020, A VIRGEM DE AGOSTO figurou na lista de dez melhores filmes da prestigiada revista Cahiers Du Cinèma. Desde o lançamento em 2019, foi comparado aos trabalhos de Éric Rohmer, nome importante da Nouvelle Vague, por conta de seu olhar sensível sobre o cotidiano de relações humanas e da presença significativa de personagens femininas. Os atributos são merecidos quando se considera a complexidade da jornada filosófica, existencialista e interior da protagonista Eva pelas ruas de Madri, justamente por tornar a sensação aparente de que pouco acontece em uma sucessão de acontecimentos renovadores e transformadores nos quais qualquer espectador pode se colocar.

(© Filmicca / Divulgação)

Logo na abertura, o contexto de um percurso metafísico é estabelecido. Nos meses de verão, os cidadãos de Madri costumam viajar para deixar para trás o forte calor da cidade e deixam suas casas vazias. Ficam no local turistas, habitantes mais corajosos e Eva, uma mulher prestes a completar 33 anos. Após pegar emprestado o apartamento de um colega, ela transita pelas ruas do centro tendo conversas casuais, encontros passageiros e atividades noturnas. Então, ao longo do verão, a protagonista acumula experiências que a fazem tentar descobrir quem verdadeiramente é.

Jonás Trueba apresenta sua narrativa entre a contextualização diegética e a construção de intimidade com a personagem principal. Nos primeiros minutos, alguns cartelas explicam os hábitos de madrilenhos de viajar para lugares de clima mais ameno e a existência de festividades na cidade de Madri para aqueles que permanecem ali, eventos em homenagem a San Cayetano, San Lorenzo e Santa Virgem de la Paloma. A partir daí, as sequências se articulam como as anotações de um diário (que mais tarde aparece explicitamente sendo escrito por Eva), passando de um dia a outro da primeira metade de agosto e mostrando o que a protagonista faz. Estes elementos são simbólicos para o filme, pois retratam o esforço do diretor de tornar os cenários expressivos para a história a ser contada e de levar o público a se identificar com a jornada dramática encenada.

A cada dia que passa, Eva se comporta como um flâneur, um ser errante que vaga por diferentes espaços sem destino nem propósito certo. Não seria incoerente associar tais andanças a esmo ao que Marshall Berman e Walter Benjamin já teorizaram sobre a passagem do século XIX para o XX, no que se refere à remodelação da sociedade burguesa, da modernidade e ao flanar do artista/intelectual por um cenário de transformações técnicas aceleradas ou de avanço crescente das relações sociais urbanas. Nesse sentido, a personagem (que trabalhava como atriz) não tem um roteiro pronto do que fará com seu tempo, podendo ficar em casa dedicada à leitura e à arrumação do ambiente ou explorando a cidade e as possibilidades de encontro com outras pessoas. Qualquer que seja a escolha, a trama mantém um estilo fluido como se estivesse sendo espontaneamente construída a partir dos acasos e das coincidências da vida urbana, algo que vem principalmente de um roteiro mais livre e sem as amarras de depender de atos, acontecimentos e reviravoltas bem demarcados.

Isso fica evidenciado pelos momentos em que Eva passa fora do apartamento. Um passeio por Madrid é redirecionado pela decisão de seguir uma turista desconhecida até o Museu Arqueológico; na instituição, ela se depara com o amigo Luis, que não via há algum tempo e com quem passa o dia; à noite, não consegue abrir a porta de entrada do prédio e, por isso, precisa pedir ajuda a amiga Sofía, que também não via há um bom tempo e com quem conversa sobre o passado; na volta para para o prédio, recebe a ajuda de Olka, uma artista que havia visto se apresentar na rua na mesma noite em que esteve com Luis, e com quem se diverte indo a festas e a um rio; em uma dessas festas, conhece Simon e Joe, primos com quem também se diverte; em outra ocasião em que está em um cinema, ouve duas desconhecidas falando sobre um processo místico para abençoar os chakras femininos e se interessa em fazer uma sessão; em outra noite, conhece Agos, um homem aparentemente solitário fumando encosto no parapeito de uma ponte, e se aproxima dele e começa uma relação. Estes e outros instantes surgem fora de uma lógica de causa e consequência convencional, como se os impulsos, os encontros fortuitos, as coincidências e as surpresas fosse as molas propulsoras para novas experiências.

Cada uma dessas interações levanta questões que atingem a etapa da vida em que Eva está. Nas conversas, surgem temas como o distanciamento de amigos, os amores do passado, as expectativas/frustrações do trabalho, o poder transformador de certos eventos para uma vida e as primeiras impressões a respeito do desconhecido. Geralmente, são os personagens coadjuvantes que tocam nesses assuntos, mas os efeitos que têm sobre a protagonista são perceptíveis nas entrelinhas e nas sutilezas. De modo indireto, é construído o arco dramático de Eva, mesmo que ela pouco comente sobre sua vida pregressa e que a própria narrativa não ofereça tantas pistas: ela se sente perdida aos 33 anos sem saber quem é e o que deve buscar para seu futuro, porém consegue se colocar em movimento para tentar encontrar um caminho para si. É interessante perceber os pequenos sinais que Itsaso Arana dá para demonstrar como a personagem tem seus incômodos e apreensões bem guardados sem a intenção de revelá-los, especialmente os olhares expressivos ao longo da sequência no rio.

Itsaso Arana também é habilidosa, em outros momentos, para tornar as emoções de Eva mais evidentes. O carisma que demonstra desde o princípio se molda a outras sensações a depender do espaço onde esteja e da companhia que tenha. Por isso, as locações são tão importantes para o desenvolvimento da produção e não apenas em termos estéticos (algo também valioso) para fazer da capital espanhola um lugar caloroso e festivo, através da iluminação repleta de cores fortes e da musicalidade presente em diversas cenas. Os cenários também alegorizam o estado emocional da protagonista, como é o caso da conversa incômoda em frente ao rio sobre nunca ter saído da Espanha e ainda assim conseguir se reinventar no mesmo local ser, seguida pelo momento em que parece encontrar conforto boiando nas águas do rio; e da epifania sentida em uma festa na qual os cantores apresentam uma música que fala sobre ainda existir tempo para se fazer o que quiser, seguida pelo encontro mais significativo com Agos.

Por mais que a narrativa de “A virgem de agosto” não se enquadre em modelos convencionais para trama, atos e viradas dramáticas, é possível acompanhar e sentir a jornada pela qual Eva passa. O aproveitamento dos cenários e o roteiro (escrito por Jonás Trueba e Itsaso Arana) composto por situações mais livres entre si estabelece um estilo menos usual de coming of age, não encarado o subgênero como algo exclusivo de arcos dramáticos de jovens em direção à vida adulta. Uma mulher aos 33 anos também pode passar pelo seu próprio processo de autodescoberta e transformação, tendo como horizonte de expectativas um porto seguro no qual encontre suporte. Afinal, algumas pistas indicam como ela pode ser um flâneur errante, por trabalhar como atriz tendo que interpretar diferentes facetas, falar que não é mais uma atriz, mas não saber dizer com o que pretende trabalhar no futuro e comentar que muda de casa constantemente. Se as alegorias religiosas não forem negligenciadas, o nome bíblico da personagem e o título em referência à Virgem Maria, essa jornada ganha uma complexidade ainda maior tal qual o desfecho simbólico e aberto a diversas leituras.